Os leitores que acompanham este blog sabem que, normalmente, eu não trato de assuntos atuais e políticos neste espaço, já que ele tem objetivos [modestamente] literários. Porém, considerando-se os acontecimentos de ontem onde o técnico Dunga externou seu descontentamento com uma parcela da imprensa e a maneira leviana, superficial e apaixonada como esse fato foi tratado, acho que posso dar uma parcela de contribuição. Os leitores eventuais que não estão interessados nisso podem ignorar este post, ok?
A verdade é que o tratamento dispensado pela Globo ao caso foi tão desproporcional à ofensa do técnico (eu não considero “cagão” um palavrão assim tão grave) que, inadvertidamente, eles acabaram criando uma unanimidade. Foi desproporcional porque, como pode ser visto, por exemplo, aqui, aqui, e aqui, a resposta à atitude do treinador pelas organizações Globo foi um linchamento público e uma tentativa clara de desmoralizar o técnico Dunga, não o seu trabalho. Pareceu que o objetivo não foi reagir a uma atitude destemperada, mas punir uma pessoa por se opor, publicamente, a práticas e interesses consolidados, como a Globo já tinha feito várias vezes.
Muitos [eu inclusive] foram críticos do trabalho e o próprio jeito do técnico. Ele nunca foi muito popular entre uma grande parcela dos apaixonados por futebol, mas esta atitude das organizações Globo uniu quase todo o Brasil a favor dele. Ainda mais quando fontes confirmaram que o motivo real para o desentendimento foi uma negativa do técnico em permitir entrevistas exclusivas, coisa que ele sempre disse que ia fazer durante a Copa. Dunga foi coerente nesta decisão que, ele sabia, ia contra os interesses da Globo. Assim, Globo acabou criando um mito…
Sim, um mito, porque provavelmente, daqui a vinte anos, ainda estaremos falando sobre esse dia, assim como ainda se fala do dia que a Globo editou o debate do Lula com o Collor e do dia em que o Saldanha foi demitido por criticar o ministério de um presidente militar. Dunga virou uma unanimidade, um herói, um mártir, um novo Tiradentes. Dunga, sozinho, conseguiu mobilizar milhares de pessoas, porque muita gente viu o fato como uma injustiça e a Globo como um inimigo que pode atrapalhar a conquista da Copa do Mundo, como bem disse o Bob Fernandes.
Porém, acho que é hora de tentar analisar isso de uma forma mais profunda. Poucas vezes na história do Brasil, um personagem encarnou tão fortemente um clamor popular e mobilizou tanta gente. Talvez o jornalista Herzog, o estudante Edson Luiz e os 18 do Forte de Copacabana sejam alguns dos poucos exemplos disso. E são exemplos trágicos.
O jornalista e seu brutal assassinato foram uma pá de cal na repressão da ditadura, abrindo caminho para o Diretas-Já, anos depois. A morte do estudante Edson Luiz foi o estopim para a grande passeata dos Cem Mil, em 1968, além da invasão da UnB e, posteriormente, o AI-5. E os 18 do forte de Copacabana foram o movimento inaugural do tenentismo, que levou à revolução de 30, com profundas mudanças sociais e econômicas.
Nestes três episódios, pessoas comuns, quase anônimas, viraram símbolos de mobilização, mitos, que nunca serão esquecidos. Guardadas as devidas proporções, a atitude de Dunga, ontem, tem grandes paralelos com elas. Mas nos fixemos no último exemplo, que eu conheço mais devido às pesquisas para o livro.
Os 18 do forte foram um grupo de insurgentes que, em 1924, tomaram o controle do forte de Copacabana para tentar evitar a posse de Artur Bernardes. Eles bombardearam diversos alvos militares na cidade, como o ministério do exército (atual comando militar do Leste), sendo fortemente rechaçados por tropas governistas. Ao segundo dia, sabendo da derrota iminente, alguns dos insurgentes decidiram marchar até o palácio do catete ou morrer tentando. Eram vinte e nove no total, comandados pelo tenente Siqueira Campos.
A bandeira do Brasil do forte foi arriada e dividida em vinte e nove partes, onde os soldados escreveram suas despedidas. Após isso, eles marcharam na praia de Copacabana, sob o olhar da multidão estupefata, e enfrentaram, sozinhos, uma força estimada em quatro mil homens. Alguns insurgentes desapareceram, muitos morreram, um civil se juntou a eles na praia, mas os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes, feridos, sobreviveram.
Em ambos os casos, Dunga e os 18 do forte, o país passava por profundas transformações, em que as forças políticas tradicionais eram questionadas e estavam na iminência de ser substituídas por outras. Em ambos os casos, os envolvidos não perceberam a profundidade do ato que praticaram. Em ambos os casos houve flagrantes tentativas de desqualificar os atos, mas houve jornalistas com coragem para denunciar e refutar os argumentos dos órgãos de imprensa consolidados.
O Brasil está mudando numa velocidade rápida demais para que percebamos. Uma nova classe média está nascendo, tornando-se consumidora, não só de produtos, mas de informação, que hoje é distribuída em uma variedade nunca vista de meios. Isto incomoda grupos midiáticos que sempre tiveram controle sobre a opinião pública. A televisão tem perdido cada vez mais espaço e isto implica em perdas no faturamento e no poder das empresas que sobrevivem deste meio.
No passado, quando houve tentativas de questionar este poder, eles recorreram a golpes ou tentativas de golpe. Agora, as condições para que ele ocorra não existem. Vivemos o mais longo período de democracia de nossa história e isso, embora eles não queiram dizer, é conquista da luta de uma considerável parcela do povo por seus direitos. E é uma luta que tem sido travada todos os dias, não só por movimentos sociais [cuja importância sempre têm sido menosprezada], mas também por cidadãos comuns, que usam os instrumentos democráticos, como o ministério público, a justiça e o legislativo, para alcançarem seus direitos.
O destempero com o plano nacional de direitos humanos, com as conquistas do governo Lula e com qualquer forma de questionamento deste poder, refletem o despreparo destes senhores para compreender esta nova conjuntura. Em um espaço onde existe liberdade, existe consciência democrática e existem cidadãos atuantes, existe também questionamento das estruturas político-sociais e, em última instância, da própria consciência cidadã. Quando as condições à satisfação a este questionamento se mostram propícias, há transformações.
No plano sócio-político, estamos vendo grandes transformações, assim como na década de 20 do século passado, quando houve o tenentismo. Novos atores políticos estão entrando no jogo de poder e questionando a autoridade de velhas oligarquias. Conquistas como o Ficha Limpa e o PNDH são sintomas disso.
Os próximos passos, certamente mais ousados, serão um aprofundamento destas mudanças. Uma vitória de Dilma, talvez até no primeiro turno, significaria, simbolicamente, um marco democrático, pelo questionamento dos antigos atores do processo político e da emergência de uma nova classe [não sou marxista, mas compreendo as transformações recentes no Brasil como reflexo da luta de classes] política, para a sua sustentação.
E, sim, Dunga faz parte deste processo, mesmo que não perceba. Sim, Dunga, com seu temperamento forte e suas idéias fixas representa, hoje, este questionamento. E a resposta das pessoas, seu apoio incondicional ao técnico, são o reflexo disso, na minha opinião.
E, bem, só para traçar um último paralelo, sabem de que estado era o civil que se uniu aos revoltosos em 1924 para morrer? Isso mesmo, era gaúcho…
Por tudo isso, seguindo recomendação do Twitter, dou total apoio ao #diasemglobo. Sexta feira será nosso protesto, sem armas.
Conto com vocês…