Por todo o horizonte, uma infinidade de morros baixos, uma sensível monotonia de verde entrecortada por árvores retorcidas, qual almas condenadas, petrificadas, pedindo perdão aos céus. Os morros imóveis pareciam a fotografia de um mar revolto, enquanto se movia o nosso herói pela estreita estrada de terra que cortava o sertão goiano.
Uma fotografia ao contrário. As árvores eram como coral, imóveis, o céu fazia vez de oceano, tomando tudo com sua solidão azul, monocromática. Não havia nuvens, mas o vento resfolegava na terra, levantando o pó vermelho do chão. O vento vinha em ondas, inconstante, batia e voltava: maresia, marola, maremoto.
Maior que o vento era a solidão. Os lábios dele rachados, as mãos calosas do trabalho pesado da roça, a pele ardida do sol. Trazia uma enxada gasta sobre as costas. E cantava.
Oiê, sinhá
Oiê, oiá
Bota feijão no fogo
Pra mode a gente jantar
E ele era preto. E tinha medo de cobra, de assum preto. Medo de relâmpago, de coruja, de onça. Medo de morrer sozinho. De ser chamado de covarde e não poder provar o contrário. Medo de fraquejar.
E ele era preto. Mas não era alto, nem forte. Era franzino.
Oiê, sinhá
Oiê, oiá
Diz a cor do teu vestido
Flor de jacarandá.
E ele era preto. E não tinha ilusões. Queria ser livre, mas não entendia bem como. Ele obedecia. Porque obedecer é certo. Obedecia como obedeceram todos antes dele e continuaria obedecendo enquanto houvesse céu, vento, solidão e árvores retorcidas pedindo perdão a Deus. Obedeceria e rezaria.
E ele era temente. Mas tomava cachaça no fim-de-semana pra espantar os maus-espíritos. Deixava um trago por santo.
Oiê, sinhá
Oiê, oiá
Me manda vortá pra casa
Pra gente poder se amar.
E ele era preto, pobre, analfabeto, mas não era iletrado não senhor. Ele era sábio, mas não entendia direito o que significava a sabedoria. Sabia os nomes das plantas, sabia andar no mato, sabia pegar passarinho, mas gostava de soltar. Sabia os nomes dos santos do altar da igreja de Pilar. Sabia dos pecados do seu Gervásio, sabia nomear todas as cores. E ele dava nomes pras estrelas no céu. Sabia soltar pipa, jogar pião. Sabia dançar nas noites de frio e sabia ficar calado.
Sabia, principalmente obedecer. Ele era preto e obedecia. Obedecia a Deus, ao seu chefe, à natureza. Obedecia, porque ele era preto, e sendo preto só lhe restava aceitar o destino. Obedecia pois era a única coisa que lhe era permitdo fazer.
Mas ele era preto. E enquanto fosse preto, sábio, livre ou covarde, sendo preto, nada importava. Ele simplesmente obedecia.
Mas ali. Entre os morros, na estrada de terra vermelha, batida. Ali, com seus pensamentos e seus espíritos. Ali, com o vento que batia errático, as pedras que permaneciam estáticas, as árvores retorcidas que suplicavam. Ali, entre milhões de corais, árvores, pássaros, vícios. Ali ele estava só. Ali não obedecia. Simplesmente ia. Andava. Suspirava. Sobrevivia.
Pois ele era preto e ninguém se importava se tinha nome ou não.
Pois ele era preto e ninguém perguntou se era feliz ou não.
Pois ele era preto e não era herói nem nada.