Caleidoscópio de Crepitares

Continuando a linha de posts sobre a realidade docente, sobre as dores e delícias de ser professor, hoje o assunto é conjuntos.

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REFLEXÃO ANDANDO NO CORREDOR DEPOIS DAS DUAS PRIMEIRAS AULAS, SUADO PORQUE O AR CONDICIONADO NÃO FUNCIONA, UM MONTE DE ALUNO ESBARRANDO EM MIM NO CAMINHO: Às vezes, por mais saberes que você tenha, por mais experiência e abertura para o novo e por mais metáforas que você conheça, há coisas que você não é capaz de dizer. Tem coisas da atividade docente que são do sentir. Esse feeling, essa capacidade de perceber os não ditos, de prestar atenção no detalhe no meio daquele caos, é o que diferencia o trabalho do professor, mas não de qualquer professor, mas daquele professor que passa pela vida do aluno e deixa lembranças.

AULA DO PRIMEIRO ANO, AULA BORING DE EXERCÍCIOS DE CONJUNTOS DO LIVRO DIDÁTICO:

– Então gente, o conjunto vazio está contido em todos os conjuntos, logo, nesse caso…

Corta pra menina com cara de incrédula na segunda cadeira do lado esquerdo. Olhar perdido e um pouco de tristeza.

– Mas como é que o vazio pode estar dentro de todos os conjuntos?

Olho pra cara dela, respiro. Metáforas.

– Vocês não sentem que tem um vazio dentro de todos vocês? – Risadas eufóricas. Espero que elas terminem – Mas é sério. Há um pouco de vazio dentro de cada coração. Vazio de alguém que se foi, vazio de um amor que não se viveu, vazio de uma coisa que não se fez, vazio de ser algo que a gente não quer ser. Vazio de carregar expectativas de outras pessoas. Vazio. Não podemos ignorar esse vazio porque ele é muito forte e poderoso. Nem podemos preencher esse vazio com outras coisas, como muita gente faz: com expectativas, com sonhos impossíveis, com comida – boto a mão na barriga e arranco algumas risadas – mas podemos dar a esse vazio uma dimensão que ele realmente tem. O vazio que tem na gente é do tamanho que a gente deixa ele ficar. A gente tem agência, ou seja, a gente pode agir na nossa cabeça para que nosso coração reconheça esse vazio e saiba lidar com ele. Resumindo, nós todos somos conjuntos com nossos vazios interiores. Tá convencida?

Ela sorri e não responde nada com a boca, mas os olhos brilham. Fim da Filosofia, vamos pra Matemática.

– Mas eu tô entendendo que vocês não digeriram muito bem esse conjunto vazio, né? – Alguns alunos assentem – Como é que pode uma coisa que não possui nada estar em todos os conjuntos? Gente, não se preocupem, a ideia do conjunto vazio é muito sofisticada…

PAUSA PARA FALAR COM O PROFESSOR: Sim, eu sei que você provavelmente teve um pouco de teoria dos conjuntos no seu curso de Álgebra (ou Análise) e conhece um pouco da axiomática dos conjuntos, provavelmente o sistema de Zermelo-Fraenkel (AZF) que é o mais famoso nas terras tupiniquins que seguem os livros do IMPA. Mas aí você vai dar aula no primeiro ano e pensa logo: vou falar da axiomática de conjuntos e vou fazer uma construção formal. Ok, é uma alternativa. Inclusive, eu acho que a potência da matemática é que, com algum pré-requisito, é possível fazer as pessoas entenderem sobre o que a teoria está falando. O caso do vazio é um exemplo emblemático já que, com base nos AZF, é possível provar que o conjunto vazio existe e é único. Mas, percebam que a dúvida aqui é outra: não é de provar a existência e unicidade do conjunto vazio, mas de dar uma concretude a esse conjunto e suas propriedades de modo que eles mesmo entendam. O professor precisa de estratégias para justamente fazer isso. Proponho um pensamento alternativo: o vazio como ideia existe (e é único) para que se adeque à teoria, para que ela seja coerente. Assim, a ideia de vazio é extremamente sofisticada já que ela não é natural – no sentido de que ela não pode ser percebida diretamente dos sentidos, como a ideia de que por dois pontos passa uma única reta – mas que foi construída como uma consequência de uma teoria matemática fundante. Assim, do ponto de vista pedagógico, o vazio é um nó, mas também é um ponto de partida.

… lembra que eu falei outro dia mesmo sobre como a teoria dos conjuntos é a base da matemática? Se a gente tá na geometria, pontos são subconjuntos de retas, que são subconjuntos do plano. Na semana passada, a gente falou dos conjuntos numéricos e que os naturais são subconjunto dos reais, etc… Então a teoria que a gente tá estudando agora não é óbvia e ela precisa ser suficientemente geral para funcionar em todos esses complexos sistemas matemáticos. Mais do que isso, gente, o que vocês tão vendo aqui é um vislumbre da própria estrutura da matemática em si. É como se a gente visitasse o interior de um prédio muito intrincado e fosse olhar o que segura ele em pé.

– Então tem axiomas de conjuntos que nem tem axiomas na Geometria?

– Sim, jovem padawan. Como o professor Claudio falou para vocês outro dia, o que sustenta esse palácio de pensamento é a lógica. Os axiomas são a fundação e a lógica é como se fossem as colunas que seguram as paredes. Por isso o que o Claudio falou pra vocês é tão importante.

Pausa para olhar de admiração.

VOLTO AO CORREDOR, NA SAUNA CARIOCA DE FIM DE VERÃO. PENSO NUM ALUNO QUE PARECIA ISOLADO, LÁ NO FUNDO DA SALA, NÃO FALOU NADA A AULA INTEIRA, MAS PRESTOU MUITA ATENÇÃO. PARECIA QUE ELE OLHAVA ATRAVÉS DE MIM. PARECIA QUE ELE CONHECIA A NATUREZA DO QUE EU FALAVA.

VOLTA PRA SALA

– Mas então, vamos voltar pro exercício. Todo mundo convencido que tem um vazio em cada conjunto? “SIM”. Vamos brincar um pouco com vazio então. O que é vazio união com o conjunto A? “A, professor, porque não junta nada com o A”. Ok, todo mundo entendeu a ideia dela?

Eu podia sentir. Era quase uma energia elétrica. A Epifania estava chegando.

– Professor, eu acho que entendi um negócio zoadaço! Eu acho que sei porque você quis falar dos conjuntos numéricos antes.

– Por quê?

– É que você falou que a gente “cria” os inteiros para poder fechar a operação lá, né?

Pulos internos de alegria. Vai que é sua Taffarel.

– Ok, onde você quer chegar?

– Então, pra mim eu tô enxergando que a união é uma operação…

Outro aluno – Caraca, maluco, é isso mesmo! É como se união fosse somar!

Aluno original – E o vazio fosse o zero!

Êxtase. Onde assino minha aposentadoria? Mantenho a cara de paisagem. A turma toda em silêncio olhando para mim. Dois ou três segundos de suspense. E eu bato, lentamente, uma mão na outra, sorrindo orgulhoso!

– Desse jeito vocês vão deixar de ser padawans logo logo! – Aplausos

Percebam que, como disse no post anterior, a ação do professor é intencional. É claro que eu não poderia saber que os alunos teriam esse insight, mas enfatizar as operações nos conjuntos numéricos na aula anterior ajudou a fazer com que eles percebessem a ideia geral de que a mesma estrutura – guardadas as devidas proporções – está na operação soma na operação união. Mas, principalmente, deixei os alunos confortáveis para fazerem conjecturas sobre ideias complexas e valorizei seus raciocínios, embora não completamente corretos. Matemática é muito sobre descoberta, mas sobretudo sobre ousadia.

VOLTA PARA O CORREDOR. O TAL ALUNO PASSA POR MIM E EU SORRIO. OK, NÃO VAMOS CONVERSAR HOJE, AINDA NÃO DÁ. MAS JÁ SEI QUE TENHO ALGO IMPORTANTE A PERGUNTAR PARA ELE. DE ALGUMA MANEIRA PERCEBO NELE UMA FAÍSCA. MAS EXISTEM OUTROS ALUNOS, OUTRAS FAÍSCAS. PENSO NA CAROL FRANÇA, EM ALGO MUITO BELO QUE ELA ME DISSE SOBRE ALUNOS SEREM FAÍSCAS DIFERENTES CREPITANDO NA SALA DE AULA E, POR ALGUM INSTANTE ENQUANTO SOU PISOTEADO PELAS CRIANÇAS CORRENDO NO INTERVALO, EU PERCEBO QUE TUDO FAZ SENTIDO, QUE PROFESSORES SÃO DOTADOS DE HABILIDADES E QUE A GENTE NÃO DEVE APAGAR CHAMAS, A GENTE DEVE FAZER CREPITARES. E, MAIS AINDA, PERCEBO QUE A UNIVERSIDADE DEVE DAR VOZ A ESSES PROFESSORES. DEVE DAR OUVIDOS A ELES (A NÓS), NÃO SÓ OUVIDOS HERMÉTICOS DE UM EXPERIMENTO CIENTÍFICO, CHEIO DE METODOLOGIAS, MAS OUVIDOS HUMANOS, HUMANIZANTES, GENEROSOS E GERADORES DE TRANSFORMAÇÕES.

VOLTA PARA QUINTA-FEIRA PASSADA: Defesa de doutorado do Fabio Lennon, vamos ao shopping depois dividir uma garrafa de vinho.

– Então, Ulisses, uma coisa que eu tenho feito com meus alunos é pedir para eles escreverem histórias…

– Histórias de vida, redações?

– Não, não. Eu peço para eles escreverem histórias sobre, sei lá, zumbis. E aí ele fala da mãe zumbi que morreu, do irmão zumbi que morreu. Das pessoas zumbis que ele amava e que ele agora está sozinho. E eu percebo que ele quer contar a história dele. É a vida dele, ele tá dizendo tudo o que a escola não deixa ele dizer, tudo o que a escola ignora, tudo o que é importante. Ele quer gritar, ele está numa sala – No caso, é uma turma de aceleração – em que todos disseram o tempo todo que eles não eram capazes, que ali não era o lugar deles, que eles eram burros e eu digo que não. Eu valorizo as histórias deles, eu os escuto, eu os deixo falar. E quando eles falam, eles confiam em mim e aí eu ganhei esses alunos. É como se a gente falasse a linguagem deles

– No sentido do Paulo Freire, de partir da realidade do aluno para fazer a pedagogia?

– Mais, no sentido etnomatemático mesmo. É de fazer com que a matemática que eu ensino tenha sentido e significado para eles

– E aí a narrativa é esse lugar da fala? Tipo, o lugar de empoderado, de super herói, de ser o cara que vai salvar o dia e matar os zumbis.

– Exatamente. Tudo o que eles precisam é de uma válvula de escape, de alguém que deixe eles serem quem são

VOLTA PRA HOJE, DEFESA DO MESTRADO DA CAROL FRANÇA.

CAROL: Mas o que eu queria era compartilhar com vocês o que é a parte mais íntima e mais pessoal desses professores entrevistados: a sua história. E eu preciso ter um cuidado muito grande com isso porque eu devo respeitar esses sujeitos que eles são. […] Assim como a gente tem de ter cuidado com ouvir os nossos alunos, permitir que eles tenham suas linguagens e cresçam, se desenvolvam com ela. Devemos te cuidado com as falsas escutas…

VOLTA PRA AULA. Tá galera, hoje a gente já andou bastante. Vamos parar conjuntos um pouco e vamos para algo mais palpável. Vocês conhecem o problema dos quatro quatros?

Há o momento do profundo e há o momento do lúdico. Há o momento do Axioma e o momento da metáfora. Há o momento do caos caótico e o momento do caos do aprendizado. Há sempre o momento de aprender.

VEM PRO PRESENTE “PRESENTE” ENQUANTO ESCREVO ESSE RELATO. De alguma forma, embora eu não saiba exatamente onde vai chegar essa história toda, eu me vejo no meio desses amálgamas todos de sensações. Me vejo no local de escuta. Me vejo no local de desconforto e reflexão. Me vejo no lugar de alguém que se sente na liberdade de ousar e experimentar. E isso, profundamente, me transforma, me transborda. Isso me faz ser eu…


Se você, caro professor, quiser continuar batendo um papo, basta mandar um e-mail para ulissesdias@yahoo.com.br. A gente tá sempre à disposição para ouvir novas histórias e melhorar! Abraços

 

 

 

 

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