Conjuntos Numéricos, Amor, Pitágoras e Bach: uma introdução problematizada

Muito inspirado pela minha colega Daniela Mendes que escreve constantemente aqui nesse belo site, eu resolvi dividir com vocês algumas das minhas experiências em sala de aula. Isso porque eu acho que nós, enquanto professores, produzimos conhecimento ao transformar os conteúdos escolares em ações pedagógicas, dotadas de intencionalidade e reflexão. Refletir, transformar a maneira de pensar desses sujeitos-alunos – em suma, fazê-los pensar fora da caixinha que eles mesmos se colocam – deve ser um dos principais objetivos do professor de matemática. Compartilhando como fazemos isso, discutindo e melhorando juntos, ao adaptar para nossos contextos escolares e nossas realidades cotidianas, pode servir para melhorar nossa prática pedagógica e, consequentemente, a aprendizagem de nossos alunos. Mas vamos ao que interessa…

Meu objetivo era trabalhar com meus alunos com os conjuntos numéricos: Naturais, inteiros, racionais, reais… Falar sobre seus subconjuntos e propriedades. Mas como fazer isso? Fiquei matutando isso uns dias, até que achei uma ótima maneira de fazer isso:

– Alunos, vamos começar a aula de hoje com uma pergunta problematizadora: como é que a gente faz para medir o amor?

Como esperado, logo após o susto inicial começou uma explosão de respostas: “ah, não dá pra medir não”; “pra medir eu tenho de ter uma unidade, que unidade é essa?”; “ué, mas amor é infinito, infinito não dá pra medir”; “mas amor é tudo igual”; “nada, o amor que eu sinto pelo meu pai é diferente do que eu sinto pela minha namorada”; “mas só dá pra medir o que eu posso observar…”; “e você observa a temperatura como?”

Foram uns bons cinco minutos com uma excelente discussão sobre o que é medir, sobre o que pode e o que não pode ser medido, sobre o que é o amor que a gente sente e – inconscientemente – sobre matemática. Volta para o professor, dúvida geral…

– Ok, nenhuma resposta satisfatória. Mas o que é medir, como é que a gente mede as coisas?

Engraçado – e esperado – ver que os alunos ainda confundem a ideia de contar com a ideia de medir. Falei com eles sobre o processo de contagem e perguntei o que a gente usa pra contar. “Números”; “mas quais números, padawans?”; “1, 2, 3”; “e como é que eles se chamam?”; “NATURAIS!!!”.

Salva de Palmas, eles se achando a última bolacha do pacote…

– Ok, mas me digam, quais são as propriedades desse conjunto?

De maneira intuitiva, falei com eles sobre três importantes propriedades dos números naturais:

  • O conjunto dos naturais tem um menor elemento
  • Todo número natural tem um sucessor
  • O conjunto dos naturais é infinito

Claro que poderia ter tomado um caminho mais formal, trabalhando os axiomas de Peano de uma maneira mais aprofundada, inclusive dizendo o que significa o “infinito” na terceira propriedade, mas meu objetivo aqui não era esse – apesar de as aulas de análise me ajudarem muito a sair das perguntas dos alunos sendo sincero e verdadeiro, mas utilizando uma linguagem menos carregada. Justamente por conhecer o formalismo da Análise que eu pude propor uma discussão sobre os fundamentos dos conjuntos numéricos com alunos do primeiro ano do ensino médio de um nível que eles são capazes de compreender. Mas minha intencionalidade como professor estava sempre ali.

Brincamos um pouco com as propriedades dos naturais, volta a fala pro professor (no caso eu, que ainda não decidi se falo em primeira ou terceira pessoa, mas acho que o leitor tá acompanhando, então tá sussa):

– Mas então, qual é o próximo conjunto?

– INTEIROS – Minha cara de decepção

– Mas por quê?

– Como assim por quê? “No livro vem os inteiros depois dos naturais”; “os inteiros são iguais aos naturais, mas com o menos” – um monte de aluno falando ao mesmo tempo como se não houvesse amanhã.

Pausa para comentários: Os alunos não questionam a ordem de exposição dos números, nem os motivos para que eles sejam assim. Apenas recitam as propriedades conhecidas por eles. Acham, inclusive que a ordem do livro é a ordem que deve ser dada. Postulo que muitos de nós, professores, pensamos assim. Eu idem…

– Mas olha só, pensem comigo, o que é mais “fácil” de acontecer: alguém medir uma coisa com uma corda e não dar a corda inteira ou, sei lá, ficar devendo dinheiro no banco? Do ponto de vista do desenvolvimento necessário da sociedade? O que eu quero dizer é que o ato de medir é historicamente anterior ao ato de criar um número negativo.

– Mas professor, então porque os livros apresentam os inteiros antes?

– Ué, por dois motivos: vocês têm razão que os inteiros são mais parecidos com os naturais, mas também porque quando a gente define os racionais – que vocês pelo visto já conhecem também – a gente usa números inteiros, né?

– Hum…

– Mas alguém falou lá atrás que os inteiros são naturais com sinal. Ok, mas como surge um número negativo?

– Subtraindo.

– A ideia tá certa, é bem por aí mesmo. A gente percebe que se a gente soma dois números naturais o resultado dá um número natural, assim como quando a gente multiplica, mas quando a gente subtrai isso não acontece. Subtrair 7 de 5 dá resultado -2. Esse conjunto novo, os inteiros, está ligado a essa ideia de fechamento das operações soma e produto

– Mas a divisão não é fechada, né professor?

– Salva de palmas para o Cacaroto aqui da fileira da direita – Alunos aplaudem – mas a gente tá indo rápido nessa discussão. Vamos escrever um pouco no quadro sobre o que a gente já sabe dos inteiros.

Aproveitei esse tempo para sistematizar no quadro as propriedades dos inteiros: com foco principalmente na existência do simétrico aditivo.

Nova pausa: Alunos de licenciatura em geral e muitos professores, em particular, não valorizam as aulas de álgebra na universidade. Mas aqui a gente enxerga um momento fundamental em que as propriedades de um anel são apresentadas – intuitivamente – aos alunos da educação básica. Conhecer aquelas demonstrações sobre o que define ou não um anel e as propriedades é muito útil para que você, como professor, compreenda a estrutura dos conjuntos numéricos. Claro que seria muito melhor que esses cursos fossem problematizados, ou seja, pensados para a licenciatura, trazendo exemplos da sala de aula. Um ótimo lugar para ver uma forma alternativa de apresentar essas disciplinas é o canal do Pemat no Youtube, onde há as aulas do curso de análise para a pós-graduação dadas pelo professor Victor Giraldo.

Volta para a aula, utilizo agora a ideia de inverso multiplicativo para justificar esse novo conjunto – os racionais. Defino os racionais em termos de a/b, com a e b inteiros, b diferente de zero, como nos livros. Mas perceba que eu não estou com foco na definição, nem com foco nos inteiros, nem com foco nas dízimas periódicas e não periódicas, nem na escrita deles na forma decimal. Apenas estou aqui focando a ideia de fechamento das operações, justamente pelo feedback da turma. Em outro momento eu voltarei as essas propriedades com mais detalhes e formalismo.

– Acabou, né galera, podemos ir embora.

– Oi? E os reais? E os irracionais?

– Mas o nosso foco não eram as operações? Somar, subtrair, multiplicar e dividir? Esse problema a gente já resolveu…

– Mas a gente não mede com os reais?

– Não, a gente mede com os racionais. Quando você tem uma medida, no mundo real, o resultado dá 1,32cm; 31,45m². No mundo real a gente não usa casas decimais infinitas, a gente usa aproximações. Então, se o foco é só para utilizar, os racionais estão de bom tamanho… só que… isso me incomoda um pouco. Eu acho que a gente não devia se focar apenas no que a gente usa, mas em entender a natureza das coisas e querer sempre mais. Porque se a gente só dá atenção para aquilo que é necessário, aquilo que é imediato, como a gente consegue entender as nuances das coisas com profundidade e ir além? Porque além disso, existe apenas e tão somente a fé. Mas quando a gente usa a razão para ir além da crença, a gente ao mesmo tempo que se liberta das amarras que colocamos sobre nós mesmos – através da crença – e podemos ver beleza onde menos imaginamos… e até morrer por isso…

– Morrer por pensar?

– Morrer por questionar a crença.

– Mas o que isso tem a ver com a matemática?

– Ora, padawans, tudo. Vou lhes contar uma história que, como todas as histórias antigas, recontadas de geração em geração, tem muito de real, mas muito de lenda. Vocês já tiveram aulas de filosofia?

– Não, começa essa semana!

– Certeza que cês vão curtir. Mas voltando, alguém que vocês já ouviram falar muito, muito, tinha uma escola de Filosofia na Grécia antiga: Pitágoras. Para ele e seus discípulos, tudo era número e se você estudar bastante será capaz de ouvir a música do universo. Mas quando dizemos número, queremos dizer número racional, a/b, sabe como é, né? Pitágoras e seus discípulos viam número em tudo: na música, nas artes, na beleza, em cada recanto do universo. Mais eis que um de seus discípulos descobriu, pasmo, que haviam números que não poderiam ser escritos na forma a/b. Estupefato, apresentou a seus colegas a sua descoberta e, embora ninguém tenha certeza exata do que aconteceu, sabe-se que morreu logo depois disso.

– Morreu como? – sempre tem alguém interessado nos detalhes mórbidos…

– Afogado. Mas continuando, dizem que ele conseguiu provar que raiz de 2 não é um número racional. Eu não sei exatamente como é que ele fez essa prova, mas eu sei uma demonstração que vocês são capazes de acompanhar

E fiz a demonstração clássica de que raiz de 2 é irracional utilizando argumento de paridade.

É importante destacar que a demonstração em si utiliza poucos elementos complexos e os alunos do primeiro ano do ensino médio acompanham bem os passos. Mas o mais interessante é que eles prestaram muita atenção no raciocínio porque eles entenderam que aquilo era fundamental, já que desafiava a ideia de que todos os números eram racionais. Não propus a discussão de um conjunto em que as dízimas não são periódicas, nem um conjunto em que estão as raízes quadradas, cúbicas, etc. A demonstração serve para introduzir um conjunto que não se encaixa, o que faz – potencialmente – os alunos terem uma visão, uma metáfora mais precisa da necessidade dos números reais. Olha a Análise aí de novo…

Acabo a demonstração e falo algumas propriedades dos números reais e vejo que os alunos estão prestando muita atenção e muito interessados. O problema de contar e medir se transformou num problema teórico importante: um novo universo é criado, os reais. Quando apresento o Diagrama de Venn, com os conjuntos numéricos encadeados, percebo que o meu foco principal foi alcançado: os alunos perceberam que novas operações, novos problemas, foram criando novos conjuntos.

conjuntos

– Percebam a beleza do que fizemos aqui hoje: novas formas de pensar levam a novos universos. É o poder do pensamento que cria o novo. Da mesma forma que ao aprender coisas novas a gente observa o mundo de uma nova maneira. A matemática é tanto uma ferramenta para entender melhor a realidade – e também para gerar mais e mais desigualdade nesse mundo tão desigual, já que pessoas com poder econômico diferente possuem também informação diferente para tomada de decisão – quanto uma maneira de criar novos mundos que podem ou não existir apenas no nosso pensamento. Se vocês entenderam isso, eu já me dou por satisfeito na aula de hoje.

Olho pro relógio, faltam 10 minutos, vamos falar a linguagem dos jovens.

– Mas então, eu falei que o Pitágoras viu música na matemática. Na verdade, ele enxergou razões entre números como uma maneira de modelar as notas musicais. Muitos professores dizem, inclusive, que a escala ocidental – dó, ré, mi.. – é devida a Pitágoras. Eu diria que isso é impreciso. Pitágoras manjava dos paranauês sim, mas assim como o seu discípulo questionou sua conclusão de que os números são todos racionais, outra grande personalidade, agora um músico, ousou questionar os padrões do que é música e ir além.

Saquei o celular do bolso.

– Ouçam isso, mas com os ouvidos de sentir, não com os ouvidos de gostar…

– O que vocês sentem?

“é chato”; “tá subindo e descendo”; “é como se estivesse dançando”; “pra mim parece uma abelha zunindo”; “é bonito, de quem é?”

– Quem compôs essa música foi um cara chamado Bach. Ele foi um grande estudioso de teoria musical e foi um dos músicos que mais contribuiu para a música ocidental. Ouso dizer que ele mudou as bases da própria música, trazendo mais emoção e sentimento para a música e permitindo que a gente pudesse ir cada vez mais longe, experimentar cada vez mais. Bach pisou nas estruturas vistas por Pitágoras e fez essa coisa linda que cês tão ouvindo agora. Mas…

Interrompo a música, mexo no celular…

– Eu sei que vocês querem ir no intervalo, mas eu queria que vocês prestassem atenção nessa flautinha no começo dessa música aqui e percebessem a semelhança

Risada geral.

– Sim, galera, o mesmo Bach fez a flautinha no começo dessa música. Então se vocês se divertiram muito nas férias dançando esse funk, agradeçam a ele. Bom intervalo pra vocês, sejam felizes e aproveitem a vida.

– Peraí, professor, cê não respondeu.

– O quê?

– A pergunta do começo da aula! Como é que a gente mede o amor?

– É simples. É só você ter uma régua infinita, hahahahaha! Tchau!


Se você, caro professor, ficou um pouco mais interessado nos detalhes históricos e matemáticos que eu trouxe na minha aula, recomendo fortemente a leitura do maravilhoso livro Godel Escer Bach que trata dessas e de outras muitas nuances da interface entre matemática, lógica, arte e música. Também estou disponível para conversar por e-mail: ulissesdias@yahoo.com.br. A gente tá sempre à disposição para ouvir novas histórias e melhorar! Abraços

 

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