A Montanha Mágica

Era 2004 e, no intervalo entre as aulas de Álgebra e Análise, eu me perdia na Biblioteca da UnB, na seção de literatura estrangeira. Foi ali que eu conheci Gabriel García Marques, Dostoievsky, Tolstoy, Nabokov, Hemingway e tantos outros. Minha alma precisava desse espaço, dessa loucura que só é preenchida pela literatura, pelas fantasias criadas nas mentes de outros.

E, numa tarde de agosto, me deparo com essa pequena advertência no Prólogo de um dentre tantos livros

Não será, portanto, num abrir e fechar de olhos que o narrador terminará a história de Hans Castorp. Não lhe bastarão para isso os sete dias de uma semana, nem tampouco sete meses. Melhora será que ele desista de computar o tempo que decorrerá sobre a Terra, enquanto nessa tarefa estiver enredado. Decerto não chegará – Deus me livre – a sete anos.

Dito isso, comecemos

Essa advertência explícita só me interessou menos do que o título do livro: A Montanha Mágica. Fascinado estava pela (não) coincidência entre o nome do livro e a da minha música preferida da Legião Urbana.

Uma longa canção de dez minutos, mas que é permeada por uma melancolia, uma desesperança, um sentimento tão comum dos adolescentes… quis eu saber quem era esse Hans Castorp e de que maneira ele influenciara meu ídolo adolescente.

E fui. Quem já leu Thomas Mann sabe que ele tem uma escrita muito sedutora. Esse jovem rapaz sem nada de especial, fruto das reflexões do autor, não é pincelado de maneira alguma diferente do que é: um rapaz ordinário. E mesmo assim, não conseguimos de modo algum nos desenlaçar dele.

Exceto se a vida, fora do livro, te traga. E foi o que aconteceu comigo. Depois de ler a terça parte do livro, findaram-se minhas duas semanas com ele e a faculdade de matemática se tornou pesada demais para que eu pudesse continuar a sua história. Foi muito penoso me despedir de Hans, mas não teve outro jeito.

Corta pra 2008, um belíssimo outono no Rio de janeiro. Praça Saens Pena. Não me restavam muitos trocados, mas quando vi aquele sebo improvisado na rua das flores, não pude evitar parar por um momento. E lá estava, encadernação azul puída, A Montanha Mágica. Um exemplar velho, surrado, que muito emocionou pelos seus singelos cinco reais.

Pus-me imediatamente à leitura. Voltei com graça ao prólogo e sublinhei a parte dos sete anos. Agora ia. Não foi. Mais ou menos na metade, o mestrado tornou impossível prosseguir.

2009, A Montanha Mágica volta comigo no ônibus da Itapemirim pra Brasília, dessa vez eu devo ter lido quase a metade. Mas havia ali alguma vergonha. Foi a primeira vez (no caso a segunda) que eu não consegui terminar um livro que eu tinha gostado tanto.

O livro foi tomando poeira na estante. 2011, eu volto ao Rio, agora definitivamente, e A Montanha Mágica permanece em Brasília: um monumento à minha vergonha. 2012, 2013, 2014… dezembro. Eu volto de carro pra casa dos meus pais e vejo ali a oportunidade de levar minha biblioteca pro Rio. O carro volta abarrotado pela BR-040.

Casa nova, livros na estante, 2015, férias. A Montanha Mágica estava na estante e eu tinha comprado uma cadeira confortável só para ler. Comecei de novo. Terceira vez que leio o prólogo. Terceira vez que eu começo. Mas… mas eu sou outro. Mudanças em mim começam a se configurar e antes que eu visse, 2016 veio mudar tudo. Fim de casamento, um novo amor. A vida estava intensa demais para conseguir dar plena atenção ao livro. Não passei das primeiras páginas.

E veio o doutorado. A leitura única do assunto da tese me exigiu uma escapatória. Minha alma precisava respirar. Mas eu já não conseguia organizar tanto meu tempo. Vivia carregando muitos livros de educação que e lia no tempo que dava, trabalhando como estava. E a namorada me deu um Kindle…

Fui procurar sites para baixar e, por curiosidade, procuro lá o renomado livro. Estava a um clique do meu novo brinquedo. Folheei – se é que a gente pode usar essa expressão nesse caso – as primeiras páginas e lá estava, no final do prefácio, a advertência dos sete anos. Já demorava mais de dez.

Comecei, sem pressa. O bom do Kindle é que ele sempre guarda a última página e A Montanha Mágica foi se tornando um desafio e um deleite. Lia-o junto de vários outros. Li-o junto de Lavoura Arcaica, de Os Sertões, de Grande Sertão Veredas. Era um livro de prazer e não de obrigação. Eram 801 páginas que eu ia galgando lentamente, quando dava tempo, quando queria retornar à história ordinária desse rapaz comum.

Defendo do doutorado dia 16 de agosto de 2019, uma belíssima sexta-feira. Já tinha lido 60% do livro (a tecnologia agora consegue fazer com que a gente mensure exatamente quanto falta). Fui trabalhando com outras coisas, e lentamente avançando no livro.

70, 80, 90% completados ontem. E hoje, depois exatos 15 anos, termino. Extasiado e emocionado. E percebo, uma vez mais, o poder da boa literatura para fazer sonhar.

 

 

 

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