Refúgio dos mestres

Era noite e eu estava no terraço do bloco da 412 norte. Tinha chovido a tarde inteira, de modo que podia sentir o cheiro de terra molhada. Lá embaixo, na L2 norte, os carros passavam muito rápido. Era 1999, fins de novembro e muitas janelas já estavam decoradas para o natal. Algumas árvores da rua também estavam brilhando com luzinhas coloridas. Sentei com as pernas cruzadas olhando a paisagem do parque olhos d’água e, mais ao longe, as águas calmas do lago Paranoá, que refletia as luzes do Lago Norte. Eram como vazios perto das luzes fortes da cidade.

Fechei os olhos e tentei controlar a respiração. “Não pense… deixe sua mente fluir… deixe ela ser como o rio que passa mansamente…”

Estava ficando cada vez mais simples fazer isto. Em poucos segundos eu não estava mais ali. Comecei a olhar para dentro de mim mesmo.

Não estava mais escuro. Havia bastante sol e um céu claro, sem nuvens. Podia ouvir o cheiro dos pássaros e sentir a relva molhada sob minhas pernas. Levantei-me. Me sentia novo, restaurado, jovem. Comecei a andar. Estava disposto e comecei seguindo o curso de um rio. Sabia que devia ir por ali. Já havia estado naquele lugar algumas vezes.

Após a terceira curva havia uma cabana. Tirei minha capa, os sapatos e entrei. Era uma cabana muito aconchegante, feita de madeira, muito limpa e com cara de que era usada com freqüência. Acendi o fogo e comecei a preparar o chá. Ela viria dali a pouco, não era de se atrasar.

O chá ficou pronto e, como de praxe, enchi duas xícaras. O cheiro era muito bom.

“Trouxe biscoitos”

Ela sempre chegava exatamente na hora.

– Lá fora não seria melhor?

Ela assentiu. Levei as xícaras para a mesinha do lado de fora e começamos a lanchar. Ela vestia um longo vestido inteiramente branco com a estampa da ordem do dragão dourada nas costas. Os cabelos muito azuis estavam soltos no cabelo encaracolado. Eu vestia um quimono azul escuro, com os emblemas da ordem do rei, da ordem de libra e da ordem dos anarquistas, das quais fazia parte.

– Sinto que nesse lugar o tempo não passa.

– Não passa, pois aqui não existe o medo…

Eu sorri.

– Ainda busca a verdade?

– A verdade nos libertará.

– Algum dia fomos livres?

– Somos livres nos nossos sonhos.

Cheguei mais próximo.

– Não adianta dizer que é proibido, certo?

Balancei a cabeça, negativamente. Ela me olhou nos olhos e sorriu.

– Eu não entendo qual é o perigo…

– O perigo é o amor, mestre ENNF de Brasília. Dois mestres não podem amar-se, ainda mais de duas ordens tão diferentes.

– Sim, eu sei – levantei-me e fui olhar as madressilvas floridas no canto do casebre – Mas há uma grande distância entre saber e entender. O saber é uma ligação racional, do cérebro para os sentidos. O saber é uma ordem, autoritária, candente. O entender é simples, puro. Uma criança é capaz de entender, mas não de saber, por também ser pura. A criança é capaz de amar, não de fingir que não ama. Entende?

– Entendo – ela veio ficar em pé ao meu lado – porém essa é uma lei dos antigos. Veio antes deste casebre e deste lugar. Eles eram sábios e muitos deles eram bons. Para serem mestres eles abriram mão de muitas coisas boas do mundo. O caminho do conhecimento é árduo e passa por negar-se, mestre ENNF.

Ela pegou minha mão.

– Admiro-te. Não és como os dragões. Tu és da ordem do rei por teres dado a sua própria vida pela de um inocente. És da ordem de libra por teres ressuscitado pelo teu sacrifício. Mas és o criador da ordem dos anarquistas por colocares teu coração acima dos teus sentidos.

– Tu me amas…

– O amor nos é negado…

– Tu me desejas

– Ardentemente.

– Mas me negas

– Todas as horas.

Sentei-me no chão. Aquele lugar era tão claro. Era impossível ser triste ali.

– O que é a verdade, maestrina?

– A verdade é um sopro inaudível…

Levantei-me, para guardar as xícaras.

– Sei o que pensas, não podes mentir pra mim, eu conheço a técnica da borboleta.

– Quem disse que não quero que saibas que minto? Saber que mente, saber que sabem que mente e ainda assim mentir não é valorizar a verdade que está por trás de todas estas palavras?

Ela nada disse. Guardei as xícaras no armário.

– Qual é a profecia desta vez? – disse a ela muito sério, quando voltei.

Ela me olhou, contrafeita.

– Nosso mundo está no fim. Tudo rui. A magia está deixando o nosso tempo. Somos alguns dos últimos. Agora as ordens servem aos interesses dos homens ricos e poderosos. Os dragões estão cada vez mais ambiciosos.

– É por isso que devemos cada vez mais depositar nossa fé nos homens.

– O que os homens fazem por si mesmos?

– Se não deixarmos que o façam, não saberão que são capazes de fazê-lo. A escolha recai em deixar o homem a par de si, do que é puro de si. O homem é a verdade, assim como a verdade é o homem, desde o princípio. A fortaleza do homem não está no homem em si, mas na força que em si carrega cada homem.

– É mais fácil crer quando se é um dos anarquistas.

– É mais fácil crer quando se ama sem pudores.

– Ilusões, tolices.

– Tu procuras a verdade na razão, eu procuro a razão na verdade. Tu procuras a lei como refúgio, eu busco a liberdade como lei. Tu procuras seguir os antigos, eu sigo o vento dos dias, ante o crepúsculo dos nossos tempos.

– O que tu procuras ainda não tem nome.

– Não tenho virtudes de taxonomista.

Ela se foi. E eu voltei lentamente, para o bosque, acordando dos meus sonhos.

 

 

 

 

Nemo Nobody

À noite tudo parece estranho e vazio. Que houve ao melhor dos meus dias? Quem me trará garantias? Tudo é pó e nada se move. O tempo marcado na memória é uma sucessão de inconsistências e solidão. O que é o real? O que é o certo? Quem sou eu? Que eu sou? Mudo as notas, mas não mudo as claves. Predomino. Nas minhas memórias passam pessoas cujos nomes não recordo. Mas lembro dos cheiros. Fragrâncias que remetem a outros dias.

Penso, peno. Vegeto. Balouço, qual um pêndulo errante e sem ritmo. Meus olhos fundos me encaram no espelho. “Oui, madame…” “Je non parle pas!” Estranho as inflexões e trejeitos. Mas, e daí? Quem se importa com as inconsistências de um velho míope e de memória curta? Quem se importa com a beleza de frases sem lógica ou nexo? Acaso somos todos cartesianos? Duvido…

Duvido de acasos. Duvido de acessos propositalmente convenientes. Duvido de frases feitas, de existências proeminentes. Duvido de evidências. Mas creio no vazio dos medíocres que preenche o silêncio de fundo do tempo isolador. Não os vês? Ah! Eles são muitos e andam atordoados pelo meu país. Uns tem grandes pernas e pequenos braços, outros, nem tanto. Uns tem grandes ouvidos auscultadores, outros línguas bipartidas, ferinas, todos com aquele brilho estranho nas retinas! São tantos e de tantas raças, tantas espécies. Opacas. Fumaça.

Deformados. Estranhos seres de anódina figura passeiam incólumes, errantes. Fantasmas que cantam, ouvem a canção da noite com o coração desbaratinado e as idéias confusamente assentadas em uma lógica intrépida e fugaz. São como os palhaços! São como os anões e a gente do circo que preenche o espaço antes…

Antes da bailarina…

Ah, a bailarina, com seus olhos mágicos, suas pernas flácidas e seus pés enormes! Não é como a bailarina do Chico, não. Ela é perfeitamente imperfeita, simetricamente assimétrica, maravilhosamente horrorosa! Ela não tem ritmo ou boa figura, ela não é jeitosa como os cisnes, nem baila como se fosse um anjo que apenas toca a terra. Não, ela carrega o semblante carregado e cansado pelos anos que não viveu. Pelos anos aprisionada na gaiola de suas próprias escolhas. Ela não sorri, mas tampouco chora. Ela não pede clemência, tampouco implora. Nem tem a volumetria propícia para tal trabalho. E ela não empolga as massas. Alguns se levantam, outros vaiam! Ah! Como ela é perfeita. Ah! Como ela é medíocre.

E eu embasbacado aplaudo com meus olhos marejados, enquanto ela canta meu nome entre os dentes: “Nemo, Nemo! Tu que não és ninguém, assim na noite me cativas. Tu que não és ninguém, na noite és garantia. Tu que não és ninguém, pros insignificantes és poesia”.

E sorrio! Com os braços abertos faço canção onde antes havia apenas o sopro, o vento e as vaias. E nem percebo a lona do circo sendo levada pelo tornado que lá fora há muito balouçava as folhas das árvores. Nem percebo o desespero dos transeuntes em sua última hora de insignificância. Ela diz meu nome entre os lábios! Sim, venha comigo, oh minha morte! Eu sempre te esperei com seu sopro gelado e seu sorriso irresistível! Estou pronto, leve-me, rapte-me! Puna-me pela dor tão cruel de uma saudade, que na realidade não me faz sentir mais nada. Leve-me… leve-me…

Leve.

Inspirado neste maravilhoso filme que eu recomendo fortemente a todos vocês.

 

 

 

 

Porque eu não vôo mais de Webjet

Então senhoras e senhores leitores deste blog eu estive de férias nos últimos dias e, por isso, o silêncio de rádio. Infelizmente não volto aqui pra falar das minhas férias, dos amigos que encontrei, das cervejas que bebi, dos sorrisos e momentos incríveis que vivi nestes dias tão especiais. Isto, por dois motivos. O primeiro é que não acho legal ficar falando da minha vida pessoal em locais públicos como este. Os meus amigos sabem da minha vida e das coisas que passam por ela e estes eu compartilho minhas coisas em outras mídias. O segundo é que é estranho falar de mim mesmo pra gente desconhecida. Sorry.

Mas há exceções em tudo e, neste caso, me sinto na obrigação de expor pra vocês as coisas que aconteceram logo no começo da viagem para que vocês não cometam os mesmos erros que eu cometi. E o maior deles foi ter comprado pela webjet. Eu precisei comprar uma passagem com certa pressa por causa de mudanças de planos e, para isso, pesquisei pelo preço. A Webjet, de longe, era a mais barata e estava num horário bom para mim. Desta forma, comprei a passagem, de Brasília para o Rio de Janeiro, com saída às 17:56, da terça-feira, dia 05/10.

Me apresentei ao check-in prontamente às 16:40 e a atendente, muito educada, me disse que o avião já estava no pátio e que o vôo sairia no horário. Embora o painel da companhia estivesse dizendo “a confirmar”, acreditei na atendente e por volta das 17:10 entrei na sala de embarque. Esperei pacientemente, perto do portão de embarque, imaginando que o vôo sairia no horário. Ledo engano…

Nos informaram que o vôo ia atrasar e depois de um certo tempo, o portão de embarque foi alterado pela primeira vez. Como o vôo ia para o Rio Grande do Sul com escala no Rio, os passageiros para o RS foram agrupados em outro vôo, enquanto nós fomos levados para um avião que, esperávamos, nos levaria para o Rio. Ledo engano…

O avião não tinha ventilação (quem já viajou de webjet sabe que eles não ligam o ar-condicionado enquanto o motor do avião não está ligado) e o comandante nos falou três vezes para termos paciência, porque precisava de autorização, porque tinha de ter um plano de vôo etc, etc, etc. Bom, o que importa é que depois de uma hora em um avião sem ventilação, sem comida e sem qualquer tipo de informação, nos disseram que o vôo seria cancelado e seríamos alocados em outro vôo, para o Rio (Santos Dumont).

A paciência acabou. Eu estava puto da vida, já que, apesar de termos sido tratados com toda educação e deferência pelos funcionários da empresa, sinto que fomos feitos de bobos por ficar mais de uma hora plantados em uma aeronave esperando para sermos despachados em outro vôo. Ora, como eu, muitos outros passageiros estavam revoltados e cobraram providências. Depois de mais meia hora de espera, começaram a distribuir bilhetes para outro vôo da mesma companhia.

Eu estava muito irritado e resolvi ir até o balcão da Infraero cobrar providências para que fôssemos alocados em outra companhia. Minha vontade era de acabar com as férias ali mesmo. Quando chegamos lá, o que encontramos? Um funcionário da webjet que nos interpelou. Falei com ele que não queria mais voar pela empresa, que tinha sido mal-tradado e que não tínhamos recebido a refeição, nem o acesso à internet e telefone, já que havia um atraso de mais de duas horas. Ele disse, muito educadamente, que ou nós desistíamos da viagem, pedindo reembolso (e perdendo todos os compromissos, que já estavam atrasados) ou tínhamos que entrar no próximo vôo. Eles não poderiam pagar refeição, nem hospedagem, nem poderiam nos realocar para outra empresa. Se fôssemos receber qualquer coisa, seria no Rio.

Eu tinha escolha? Não, ele disse que não haveria mais tempo para fazer a reclamação na Infraero e não fizemos, pensando que não havia problema nenhum em fazer no Rio. Ledo engano…

Pois então, nos colocaram no segundo avião (isto depois de mudar o portão de embarque mais quatro vezes) e lá ficamos, esperando finalmente ir pro Rio. Ledo engano…

O avião ficou mais meia-hora parado, pasmem, pq não tinha ventilação (de novo!). Não, não era o mesmo avião. Sim, era o mesmo problema. Claro, o nível de irritação chegou ao seu limite e tive que me segurar para não cometer um crime…

Bom, o avião partiu. Pensei que os problemas tinham acabado. Ledo engano…

Chegamos ao Rio, aeroporto Santos Dumont (o vôo original ia para o Galeão) e, para nossa surpresa, o aeroporto já estava fechado. Eram 11:10 e todas as lojas, o balcão da Infraero, tudo, estava fechado. Mais de três horas de atraso. Chegando à terra, fomos informados pela companhia que nem nossa refeição poderia ser disponibilizada, pois não havia lojas abertas. Fiquei com cara de bocó.

Ok, a Webjet deve ter desculpas para todas estas coisas. Vai dizer que é normal realocar passageiros, que não cometeu nenhuma ilegalidade e todo aquele papinho de empresa brasileira. Mas e daí? O que importa primeiro é o bem-estar dos passageiros (também conhecidos como clientes) e isso, certamente, passou muito longe do tratamento que nos foi dispensado.

Pensando nisto tudo, eu me arrisco a dizer que:

  1. Na verdade, como o vôo estava vazio desde o princípio, desconfiamos que iriam nos colocar em outro. Então o lance do comandante pedindo desculpas foi só um teatrinho para a gente não descer e ir reclamar com a Infraero;
  2. Tanto é que quando fomos lá na Infraero reclamar já tinha um funcionário da Webjet esperando com a desculpa para que não fizéssemos a reclamação, pois não havia tempo;
  3. Tempo que havia, já que o vôo atrasou mais meia-hora, mais do que suficiente para abrir um auto de infração contra a empresa e garantir que eles seriam punidos pelo tratamento bovino dispensado aos seus passageiros (também conhecidos como clientes);
  4. Nos sentimos lesados e enganados por chegar em um aeroporto fechado, onde não teríamos acesso aos nossos direitos e nem poderíamos fazer a reclamação, que disseram que não daria tempo de fazer em Brasília.

Resumindo a história, a Webjet se mostrou uma empresa incapaz de compreender as necessidades de seus passageiros e dar soluções que atendessem nossas demandas, despreparada para nos dar opções e sem o menor comprometimento com a qualidade do serviço e o bem-estar de seus passageiros (ou seja, clientes). Eu escrevo isso para denunciar a todos vocês como isto aconteceu e para que vocês nunca mais utilizem esta empresa, que diz, orgulhosa, que é a terceira do país. Certamente, esta posição não permanecerá por muito tempo…

Sei que este não foi um ato isolado. Na verdade, devo ter feito uns oito trechos com esta empresa e me lembro de só não ter acontecido atrasos de mais de meia-hora em dois deles. Sei também que não é ato isolado os passageiros ficarem esperando em um avião sem ventilação. E sei que eles não tratam bem sequer seus funcionários, pelo que pode ser visto na imprensa ultimamente.

Por isso, deixo aqui não só o meu protesto, mas faço uma campanha para que nenhum de vocês utilize mais esta empresa que tem um longo histórico de destrato com seus clientes e funcionários.

Atenciosamente,

Poeta Matemático

 

 

 

 

 

Números

Allons, enfants de la Patrie,
Le jour de gloire est arrive,
Contre nous de la tyrannie
L’etendard sanglant est leve,
L’etendard sanglant est leve.

Entendez-vous, dans le campagnes,
Mugir ces feroces soldats?
Ils viennent jusque dans no bras,
Egorger nos fils, nos compagnes.

Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons! Marchons! Marchons!
Qu’un sang impur abreuve nos sillons![1]

Acordou sobressaltado. O relógio de cabeceira, daqueles antigos de luminoso digital vermelho, marcava 4:30. Sete, bom número. Levantou-se e foi até a cozinha beber água gelada a grandes sorvos. Era uma noite quente e ele estava suado. Foi até a pia do banheiro, jogar água no cabelo. Olhou-se. Parecia ter muito menos de trinta anos agora que não usava mais barba. Da janelinha do banheiro podia ouvir os barulhos da rua. A cidade não dormia.

Sentou-se sobre a cama. Em quê havia sonhado? Ou será que a pergunta era com quem? Lembrava do cheiro adocicado, mas não muito. O toque macio da pele. Lembrava exatamente da sensação de ter aquele rosto entre suas mãos. Estranho, nunca lembrou-se de lembrar de um toque ou de um cheiro no sonho. Para ele, sonhos sempre foram imagens e som.

Deitou-se na cama nu, ouvindo o som do ventilador. Queria que chovesse, assim ele não conseguia dormir de novo. Levantou-se, apagou a luz. 4:44. Três, bom número, divino. Ficou pensando. Sete, três. Dez, um. Não tão bom. Estralou os dedos. Que cheiro era aquele? E o toque…

Era uma mulher. Quem? Por quê? Ele não sabia. Apenas sabia que nunca a tinha visto. 4:50. Nove, nem bom nem mau. 1 e 9, 10, de novo 1. Não tão bom. Fechou os olhos. Queria lembrar-se dela. “10 duas vezes?”. “Será que você não consegue afastar a matemática da sua cabeça um instante?” Mas eram dois dez. Não eram uns quaisquer, eram dois dez. Ok, um e um, dois. Não tão bom.

Quem era ela? Era de um filme? Abriu os olhos! Agora sabia! Amêndoas…

“Amêndoas? Isso não ajudava. Seria o óleo? O xampu? O hidratante, o desodorante? Talvez uma cesta de frutas? Não! Fumaça! Era isso, incenso! Incenso de amêndoas”. Levantou-se da cama, sobressaltado. Incenso. Olhou para o relógio. 5:02. Sete, de novo. Sete é bom. Estava chegando perto.

Fechou os olhos. No escuro as suas mãos se mexiam como se a quisessem tocar. “Ela tinha rosto?” Não, ela tinha cheiro, mas o cheiro nem era dela, era do incenso. “E eu?”. ”Não, você não a conhece, rapaz, mas conhece o cheiro… mas há outro. É mais ardido, apimentado, forte, o que é?”

Não conseguia lembrar-se de mais nada. Maldito sonho. 5:03, oito. “Foi só um instante? Pareceu ser bem mais…” “Porra, oito? Não faz sentido!”. Tá, ele não esperava um oito. Agora tinha de pensar. Oito, sete, quinze, seis. Péssimo número. Somando os dois de antes, dava os oito de novo. Oito, oito, oito…

Sim! Oito!

Levantou-se e foi até a sala, ligou a luz e pegou um livro de álgebra. Começou a fazer alguns cálculos. Nem percebeu que continuava nu. O relógio da sala: 5:45. “Catorze, cinco. Cinco? Porra de cinco!”

“Cânfora!” Agora ele sabia, era cânfora!

O dia começava a clarear. Nada de chuva. 6:00. Seis de novo. Seis em ponto. Engraçado. Foi até a geladeira, pegou o leite. Bebeu de um gole só. Olhou pela janela e para o celular que estava sobre a mesa. Viu se não tinha nenhuma mensagem. Abriu o visor, nenhuma. 6:08. Catorze, cinco.

De repente entendeu tudo. Anotou todos os números em um papel sobre a mesa

7397-8565

Sorriu. Ligou. Demorou, mas ela atendeu. Estava dormindo.

– Aline?

– Brian, você sabe que horas são?

– Matemáticos não dormem, Aline.

– Eu já tinha percebido – ela estava com voz sonolenta, mas não irritada.

– Escuta, você quer sair hoje? – ele falou com firmeza.

Ela engoliu em seco.

– Sair?

– É, porque se somarmos tudo dá cinqüenta, que é cinco. É um bom número.

– Que números?

– Eu te explico depois. Você aceita?

Ela respondeu meio contrariada.

– Sim, aceito. Posso dormir agora?

– Pode…

Ia desligando, quando falou

– Espera…

– Que foi, Brian?

– Seu xampu é de amêndoas?

Ela sorriu.

– Não, só o sabonete. O xampu é de cânfora.

– Ah, ok! Só pra ter certeza.

Ele desligou. Ela ficou ainda muito tempo pensando naquele rapaz maluco de óculos e cabelos bagunçados…

[1] Letra original da Marselhesa, canto da revolução francesa e hino oficial da França.