Purgatório

Parou

depois de um certo tempo

para ouvir os ecos na noite vazia.

Nem bruma, nem neblina, nem nuvem, nem vento.

Apenas a calma imanente que antecede o silêncio.

Voltou-se em pedaços,

vagas perpétuas e indômitas,

que colorem o breu noturno.

Veio a lágrima, quente rolar augusta

elíptica na pele alva

livre e errante,

relembrar as agruras de um tempo moribundo.

Mas a lágrima se anuncia e rola

pútrida que está de um sentimento ausente

austera qual noite de radiante lúmen

solitária, qual a calma de um sufocar silente.

Vazios e inexistências misturam-se:

compõem o réquiem mágico de um rei perdido.

“Sebastião: voltai das terras sarracenas

trazei de volta o orgulho de lusitano povo

encaminhai a luta deste mundo novo”

 

A loucura, a febre de morte toma a terra santa

onde sonhos e pesadelos se misturam todos

o camafeu e a esmeralda, o olho, a ressaca

a lança e o índio.

Heitor e Aquiles,

Enéias e Ulisses,

Páris e Agamenòn,

César e Napoleão.

Quem vai chorar pelos reis que perderam a vida?

Quem vai dizer no momento derradeiro

que deitou-se com a morte pela Glória?

Nem a coorte dos anjos, nem a legião,

nem a faca de Anacreonte,

nem os pés de Absalão,

nem as nações d’África

nem o rosário de contas tépidas

dos dedos de um monge bom

nada: nem flor, nem dor, nem mágoa

nem etéreo, nem ponte, nem virgem,

nem sequer a bacante nua. Nem ela chora.

Porque embora a noite se arrogue branda

a solitária face embranquecida e bruta

cai de terror quando se inicia a luta

e desfalece mágica no alvorecer divino.

Vinde e vede a flor que nasce no deserto.

Cante o canto e brote em si a força que desaparece.

E a prisão em que sublime e culta se anuncia eterna

caia de desgraça em retinir pungente.

E então, quando os mil passos de um vagar sorrateiro

iluminado e cheio de um porvir bravio

estacarem em um fim de encruzilhada certa

que o teu coração: a alegria e a reza

fundam-se num átimo em beleza e candura.

Lúgubre Epitáfio

Sentou-se na varanda e olhou por muito tempo os morros verdes ao Oeste. O sol se pôs, naquela exuberância conhecida de janeiro, onde mesmo as cores não sendo tantas, nem tão vastas como em julho, o espetáculo das nuvens de chuva se misturando com os humores da terra, produzia uma cadência lúgubre, uma sensação delicada que toca a face com um vento frio naquela tarde morna e comum. Mas ela não notou. Nem sequer o arco-íris que tomou o céu de ponta a ponta e foi o assunto mais comentado por todos no dia seguinte. Ela olhava e não via. Nem sequer sentiu quando a primeira lágrima caiu, fria e intrépida, deslizando pelas bochechas negras e salientes. Era um azedume, uma dor fina e delicada, embora nitidamente insuportável. Talvez fosse o vazio, talvez fosse o desassossego. Talvez, quem sabe, a esperança de um milagre que ela sabia que não viria. Ou talvez os humores do ódio. Não, ela sabia. Era a Ausência que se mostrava tão concreta que podia ouvi-la ribombar nos ouvidos mais e mais presente, mais e mais avassaladora, aproximando-se como uma locomotiva desgovernada de seu destino inexorável. Mas havia a impotência. E havia a noite que se misturava agora aos últimos humores do dia e tomava tudo. Havia os cantos dos grilos, os pios das corujas e dos outros tantos animais da noite que saíam do campo para a vida. E havia ela, os cabelos brancos desgrenhados, as mãos calejadas cheias de veias, os sulcos profundos na face marcada pelos sofrimentos de tantos e tantos anos. Nunca foi tão só e nunca precisou tanto de uma presença para chamar de sua. Lembrou-se da primeira vez que o viu, belo e mordaz, uma postura altiva de príncipe núbio envergando um chapéu coco como uma coroa de ouro e prata. Havia o olhar desinteressado, a malemolência mal disfarçada de quem sabe que tem um mundo para chamar de seu. E havia as vozes do passado, as lembranças que se misturavam agora, porque o tempo só é tempo no presente e o passado, para ela, é um arquivo bagunçado de lembranças desconexas. Porque a lembrança daquele primeiro dia misturou-se com uma outra, dolorosa e terrível de quando ele partiu pela derradeira vez, agora curvado pelos muitos anos de trabalho, o chapéu coco roto e os olhos vazios de quem não tem esperança alguma de futuro. Lembranças que se misturam com a dor das mãos sanguinolentas de cavoucar a terra para enterrar o derradeiro filho. Tão menino, tão franzino, tão inocente que se foi sorrindo acreditando ver a face augusta de Jesus, nosso senhor. E era ela ali, naquela imensidão de solidões infindas, esperando com a boca aberta por uma morte que não vinha. Cem anos, cem anos recém completados em que agora pareciam cem eras, cem glaciações, cem séculos em que nada, absolutamente mudou no seu pedaço de chão seco e empoeirado em que não se nascia nem sequer o mínimo para saciar a fome e a sede. Cem anos em que a vida foi apenas lutar, sobreviver aos elementos, buscar o sustento do pó, da chuva e das lágrimas. Cem anos de uma vida que, vista agora, não passou de desperdício.

Levantou-se da cadeira. Era noite alta e os ossos doíam. Abotoou o xale, rezou para seus santos e dormiu um sono de sombras, silêncios e gemidos.

Uma breve e incompleta análise dos acontecimentos do Rio de Janeiro nos últimos meses

 

Em primeiro lugar, este não será um post coxinha. Se você espera ler opiniões politicamente corretas, este não é o seu lugar. Sugiro que você vá para outro site onde vai se sentir mais confortável.

Estou aqui como participante dos movimentos ocorridos no Rio de Janeiro desde o começo de junho para expor meu relato e minhas opiniões. Não, não sou filiado a nenhum partido político – embora isso francamente não importe. E também não tive um protagonismo nestes acontecimentos. Fui como testemunha da história, para entender o que está ocorrendo no meu país e também por acreditar que eu não posso me furtar a expor minha opinião e minha indignação na rua. Sim, não é lendo os jornais, nem assistindo as coisas pela twittcam que você vai entender o que está acontecendo. Nem falando com alguém que viu algo acontecer e que disse que isso e isso aconteceu…

Não, meu amigo. Se você não se sufocou com gás de pimenta, se você não correu que nem um louco de bombas de efeito moral, se você não ficou morrendo de medo de balas de borracha, se não correu desesperado atrás de um pouco de vinagre ou leite de magnésia, se não ficou morrendo de medo de um carro preto do bope, sem placa ou identificação, se você não viu policiais sacando armas de verdade e atirando para o alto, você nunca será capaz de entender do que eu estou falando. O que está acontecendo no Rio é um massacre. A polícia está prendendo pessoas sem acusação, forjando provas, perseguindo pessoas, sequestrando, mandando gente para presídios sem provas, colocando na mesma cela que criminosos da pior espécie. Não, meu amigo, eles não prendem só os baderneiros, como querem que você acredite. Eles prendem professores, prendem casais de namorados, prendem pesquisadores, prendem absolutamente qualquer um. Eles revistam mochilas sem a presença dos donos e elas aparecem cheias de pedras, coquetéis molotov e rojões. Sim, eles jogaram pedras e bombas de efeito moral do alto de prédios. Sim, eles jogaram spray de pimenta na cara de crianças e velhinhas indiscriminadamente. Sim, eles querem implantar o medo, querem colocar você contra as manifestações e contra aquilo pelo qual estamos lutando. E você está caindo como um pato.

E não pense que isso não é de propósito. A polícia é um dos mais poderosos instrumentos de manutenção do poder nas mãos de quem nos domina. A polícia tem como uma das suas missões manter a ordem, ou seja, sufocar movimentos que possam causar mudanças profundas na sociedade. Movimentos que podem mudar os donos do poder e questionar o que é feito por quem exerce o poder. Não por acaso, a polícia do Rio de Janeiro está usando agora a Lei de Segurança Nacional para enquadrar e prender manifestantes com base em argumentos tão sólidos quanto algodão doce. E estão fazendo isso com a desculpa de manter a paz.

Desculpe tirar você da sua ignorância. Deve ser muito cômodo pensar que sempre estivemos deitados em berço esplêndido, que somos e sempre fomos um país pacífico e ordeiro. NUNCA FOMOS, NUNCA SEREMOS. Você pensa isso porque não conhece a história. Porque não conhece o Contestado, a Revolta da Chibata, porque pensa que Antônio Conselheiro era apenas um maluco. Porque para você a revolução de 30 foi apenas uma data. Porque para você, a coluna prestes foi apenas uma página em um livro de um passado longínquo. O Estado brasileiro MATA. A nossa ordem social foi conseguida pelo assassinato sistemático de milhares – não, não estou exagerando – milhares de pessoas apenas no século XX. E não estou falando da ditadura, nem das mortes no campo. Não estou falando do massacre de nações indígenas inteiras, nos anos 70, para que tivéssemos uma nova fronteira agrícola no Mato Grosso e no sul do Pará. Não estou falando também das mortes nos morros e favelas na “guerra” contra as drogas. Quase toda a violência que nós sofremos hoje veio de ações desastrosas do Estado que tiveram como efeito principal potencializar a exclusão em nome da ordem. O Estado é o principal fiador de toda essa insegurança que sentimos nas ruas.

Sim, meu amigo, e querem que você acredite que tudo começou com o black bloc. Se existe Black Bloc nas ruas hoje, o culpado é um só: Sérgio Cabral. Porque as manifestações começaram “ordeiras e pacíficas”, fruto da indignação legítima de nosso povo. Se elas se transformaram nesse espetáculo de violência, nesse banho de sangue, foi porque alguém decidiu que era mais fácil meter a porrada nas pessoas do que tentar ouvi-las. E ele está desesperado agora, prendendo pessoas sem provas, porque ele sabe que seu projeto político acabou. Ele quer sufocar as manifestações para ter ainda alguma esperança de continuar no poder. Basta você perceber que as bombas de efeito moral começam sempre junto com a música do jornal nacional.

As ações dos black blocs são legítimas pois são uma defesa contra a injustiça e covardia da polícia. E eu até hoje não os vi, nenhuma vez, começar a quebradeira. E se amanhã prenderem todos esses garotos – muitos deles meninos ainda sem barba – e não tiver mais nenhum deles nas ruas, eu mesmo vou me vestir de preto, botar máscara de gás e ir pra rua. Porque todos têm direito de se defender da injustiça. E quando a injustiça vem do lado da polícia, quando usam a lei para minar a vontade de lutar do povo, é preciso mostrar-se ainda mais forte. Porque chega o dia em que não dá pra ficar mais calado. Chega o dia de dar o basta, chega o dia em que tem de se decidir por um lado.

Nossa democracia está chegando a um ponto de inflexão, porque não é mais possível que a lei sirva como instrumento da injustiça. Não é mais possível que haja dois pesos e duas medidas. Nosso povo quer ter poder de decidir, quer poder fiscalizar de perto, quer ser parte da construção de um país melhor. Nosso povo não vai mais dar descanso a governantes que enriquecem às nossas custas e que usam todos os tipos de subterfúgios para se perpetuar no poder.

Lutaremos. Enquanto houver forças lutaremos. Podem tirar nossa liberdade, podem tirar nossos empregos, podem tirar nossas vidas, como eles já mostraram não ter a menor vergonha de fazer. Mas ainda assim, lutaremos. Porque o que nos move não é a gana de poder, nem a busca por privilégios. O que nos move são nossos sonhos, nossas ideias. O que nos move é nosso amor pela justiça. Contra isso, não há bala de borracha, bomba de efeito moral, mordaça ou tortura que resolva. A vontade de fazer o que é certo prevalecerá.

E tenho dito…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Perdeu-se.

Disse depois de um mês ausente

de lembranças.

Feriu-se.

Mutilou o coração e as dúvidas

na madrugada

fria.

Seus pés tocaram o asfalto

insólito.

Seu corpo escreveu uma canção

de dúvida, discernimento, amor e encanto

nas paredes da memória fugaz.

Perdeu-se.

Dissipou no átrio as lágrimas e sonhos em soluços.

Foi-se, mar bravio

e intempestivo como só ele só

traçou planos de ressaca.

 

A moça tatuada

A noite é um suspiro morno quando ela se deita nua, vestida dum véu de estrelas e ansiosa de beijos e gemidos.

A noite é um suspiro breve

Uma busca soberana

Por um prazo

Um ultimato

Um infinito.

A noite é um chão de estrelas, quando ela me toma inteira e me domina.

A noite é um dragão nascente

Uma flor que nasce do colo

Uma epopeia sem guerreiros

E príncipes

A noite é um princípio, quando me tomas e me sorves, me pedes que te dê o que mais precisas.

A noite são as gotas de chuva

Caindo na janela

Enquanto minha mão e a tua

Se entrelaçam, unidas.

A noite é um corpo em dois, fundido-se em sentimentalidades inexplicáveis.

A noite é uma vela tênue

Balançando ao vento

Queimando

Na cor dos seus cabelos

A noite é um desespero, quando me arranhas a pele e me exiges mais.

A noite é um sono lânguido

Enquanto a acalanto

Esperando que no sonho

Você alcance o céu…

A carne trêmula mantêm-se assim por muito tempo após o ato. Respiraram ruidosamente olhando para o teto do quarto e para o relógio da cômoda piscando os segundos. Não houve palavra, ou gesto, ou malícia no ato. Apenas a cópula carnal, animal, irracional, onde carnes, bocas, lábios, salivas e saliências se misturaram antes que houvesse suspiro algum de arrependimento. Não que não tivesse sido planejado. Nas cabeças dos dois, separados, aquele momento foi vivido muitas e muitas vezes antes que se consumasse. Horas e horas solitários imaginando o toque da pele, o sabor da saliva, o momento propício para que os dois pudessem se encontrar e que os corpos se unissem tão juntos como se um fossem. Mas ela pensava que não, que havia de ser um dia após vários encontros e que ele traria flores e que se beijariam muito com os olhos fechados antes que se apagasse a luz e se deitassem sob o edredom. Já ele imaginava aquilo de um jeito tranquilo e intenso, sob uma luz estonteante de um mês de julho. Nenhum dos dois estava preparado para, olhando-se nos olhos e estando muito juntos, jogarem-se um no outro com uma fome que não se sacia, no sofá da sala mesmo, sem cerimônias.

E agora, envergonhados e nus, os olhos dos dois se evitam como se, ao fazerem isto, apagassem também do mundo as peças de roupa espalhadas pelo exíguo apartamento dela, as marcas de dedos e unhas nas costas um do outro e o embaraço de fazer tudo diferente do jeito que se supõe que se faça para começar uma história de amor.

Janeiro

[youtube:’http://www.youtube.com/watch?v=72vZFnvsbbc’%5D

O pulso canta em variáveis aleatórias ininteligíveis. O poeta, perdido em sentimentos escusos, se debulha em lágrimas torrenciais. Nenhum grilo canta. Nenhuma ave solta sequer um pio de assentimento. A loucura, como em um espetáculo de Quixote mantém se desacordada em um murmuro pétreo. Delírio é o nome de uma flor que queda-se mutilada em frente ao abismo. A faca corta a Lua e dela faz incontáveis camafeus. Vinte e tantos anos desde o último setembro que vivi naquela terra de chuvas esparsas e céu azul. E a fuga das horas começa como um vagido sofrido e cresce incontrolável como uma torrente de solfejos em bemol. “MINHA VIDA TODA ESPERA ALGO DE MIM”. Batizei meu filho com um nome forte, mas não lhe dei força em nenhum momento que ele precisou. A fraqueza é um átrio de castelo esperando para ser conquistado. Vendi meus livros, vendi minhas posses, vendi minha vida por trabalho. Nada recebi em troca, exceto um assentimento mordaz de alguém a quem ensinei algo que eu mesmo não sabia. Alguém que não me mostrou sequer gratidão. A vida é uma inevitável sucessão de insucessos, disse o otimista numa noite de julho. Perdi meus óculos ontem e nunca enxerguei tão bem. Exagerei minhas culpas, buscando a expiação de um mal que sempre fui inocente: foi pra conseguir a redenção de certos pecados de que não me orgulho. O telefone toca na madrugada, é alguém cujo nome eu não lembro, mas que veio me pedir ajuda do jeito errado. Recuso com o coração pesado mais uma vez. Estou perdendo dentes e nunca fui tão cansado e derrotado. É o sinal dos tempos que vivemos. O pedinte carrega as máculas de uma vida vã, mas o sorriso denuncia um coração puro. Invejo-o. Invejo a eles todos.

É tarde, eu disse, muito tarde, e age como se não me culpasses… Quero que me beijes, mas me recusas com carinho de alguém que sente apenas pena. Nem o calor teu nessa noite eu consegui. Penso em encerrar com tudo hoje na hora do almoço, mas me perdi na rotina interminável dos dias que se sucedem. E vivo, vegeto. Canto com os olhos brilhantes e o sorriso falso, enquanto espero espantado o cadafalso que me trará descanso.

O leão e o príncipe

Eleva-se o Leão da Selva

Em pedra luzindo errante

Brada, agita, eleva

A terra de Anacreonte!

As musas, desterro pétreo

Ribombam qual Cicerones

Cantam, dividem o cetro

Da guerra ao reino distante

E o canto embala o Império

A casa, o terraço, a lua

Espalham o vão mistério

Da vida que continua…

Pousam na Terra as fadas

Do herói ferido, o ósculo

Suas asas vão delicadas

Inflamam o momento histórico

“Beijai, ó damas, bendigo”

“Não chorai: é pleno o dia”

“Não temam, não há perigo”

“A Prosa Vencerá a Poesia”

A nau singra os vales augustos

O estandarte do reino balança

Guerreiros dentre os mais justos

A Palavra: virtude é a lança

Que corta, destrói, ressuscita

Inflige as dores mais cândidas

Cura da praga maldita

Que nos corrói as entranhas!

“Emanuel, Emanuel, meu filho!”

“A faca que trouxestes é cega!”

“O escudo de ouro é um suspiro”

“Tua mão fria me gela”

“Enquanto me esbarro contigo”

“Banhado do sangue teu”

“Carrego-te pelo campo de guerra”

“Impregnado da ira de Zeus”

“Maldigo a toda Terra”

“Quem vem matar o rei dos andantes?”

“Quem vai vingar uma dor tão terrível?”

“Quem ousou trespassar com a lança”

“O peito vazio do meu filho?”

 

Chora o Rei, o leão

Choram as fadas aflitas

Deitado inerte no chão

O príncipe das profecias

.

.

.

.

.

A luz delicada ressoa

Na noite silente de outubro

Nem barco, nem lança ou pessoa

Quebra o frescor noturno

Mas ali, um rubor imponente

Clareia o horizonte ao longe

Talvez seja o deus dos clementes

Talvez pela prece de um monge

Talvez sejam gaitas e foles

Cantando um fado arrastado

A faca que geme e se move

No fulgor do porvir, o passado

Emanuel, Emanuel, Emanuel

Cantam os anjos e filhos

Nos brejos, na Terra e no Céu

O brado mais genuíno:

Esperança, me toma nos braços

Um reino sem príncipes ou reis

Sem negros, pobres e escravos

Onde nem força, limite ou lei

Macule a esperança dos fracos!

 

E a bela com braços abertos

Me beija, efusivamente

Não há leão, nem reino, nem cetro

Nem guerra ao reino distante

Somente o carinho e afeto

Nos corações dos amantes

Vi! Venci! Chorei as mortes dos justos

Mas brindo à força dos vivos

Meu peito canta ininterrupto

Coragem é o nome do silvo

Adeus, bendigo as palavras

Confirmo o atroz proceder

Adeus aos dias amargos

Meu reino agora é você…

O que é ao longe

 

Toco-te.

Fecho os olhos

e toco-te.

Sinto o perfume

o sabor,

o macio inerte da pele

[tua]

Toco-te.

Encanto-me com as

garantias e submisso

brado a poesia,

o canto silente

e pernicioso

pensando na língua

        [tua]

Meu peito é um lamento

impávido e errante

vacilo por um momento

sem mar, sem norte, sem lar ou sem vento

marcho nas montanhas da tua pele

    [nua]

Procuro tua boca

meu ar, meu gosto

minhas sinestesias

estonteantes

palavras e gestos

toques e versos,

sentimentos disformes,

a loucura, o brilho

o tremor involuntário, os acordes

dos corpos

tocados em sinfonia,

minha pele e a pele

        [tua]

Soltas um vagido

um suspiro

uma loucura capaz de matar

e matas:

Morro.

De ausências.

De lembranças.

De fantasias.

De excentricidades.

Morro de saudades.

Morro de ti, augusta dama

com um toque teu, minh’alma se inflama

e voa longe, alcança mares, ilhas, continentes

embarca em viagens inconsistentes

na busca de um gosto,

um regaço que seja,

um recanto para unir minha boca

    [à tua]

 

Presídio

Navegadô

Quem é o sinhô

Que me mostrô, que é o mar?

Navagadô

Seu timoneiro

Dançô, dançô

Trabalhadô

Vem das areia

E pronde vai?

Vou te levar

Pronde é que vô?

Navegadô…

Eu vou entrar

Na embarcação

Vou navegá

Sem direção

Quando chegá

Será verão

No Equadô

É sempre bão

Vai tê festança

É São João

Nosso Sinhô

Vai me ajudá

É a fogueira

A crepitá

E os meus lábios

A suplicá!

Navegadô…

Vamo simbora

Pralém mar

Levanta as vela

E navegá

Pusque só o vento

Pra me levá

Longe de mim

Longe da dô

Que tem assim

Que dói em mim

Pobre de mim…

[youtube:http://www.youtube.com/watch?v=oHKAAt_jDmE%5D

A fuga da pitangueira

 

Foges de si

Desalmada e nua

Incandescente de incongruências

Pedante de semânticas

E de luxúrias

Vives em tempestades

Navegas em pesadelos

Cobre-se de desassossegos

E oscula-me com os olhos

E com as bocas, tantas bocas quanto tens.

Vê-te fugidia

Jura que estás vazia

De versos, flores, cores e silêncios,

Páginas e páginas de um livro de tormentos

E loucuras insistentes

Que zunem, param, vibram, encantam, matam e realizam

Gritam, geram a vida, o inverso e o infinito em cada parte.

Está escrito: foges de si

Está escrito: queres de si, ama-se, vive-se de si.

Está escrito: toma-te nas mãos e fala com os lábios

Nus

Infames

Inertes.

Conta histórias de linhas tortas

De amor

De honra

E de reflexão

De angústia.

Põe ideias onde há caos

E caos onde reinam os hiperlativos.

Foges de si, pois é na fuga que te encontras

É na impressão que te expressas

É na imensidão que te findas

E no recomeço que te recarregas…

Foges de si, pois és regaço e camafeu

Intrépida, errante pendão

Que balouça à beira do abismo.

A Morte de João Augusto


 

Dei-te a morte,

Disse-me com o coração contrito

E a boca seca, quebrando em calafrios.

Mataram-te, me disseram.

Como foi isto?

Será uma baioneta

Ou um fio de espada

Será uma granada, um tiro, uma escopeta estourando na garganta?

Será um risco, uma queda, uma flor que desabrocha no espaço?

Mataram-te: ficam estourando na cabeça, duas palavras

O sentimento de impotência indescritível,

As mãos frias, o sangue circulando lento e denso

O coração enlouquecido buscando uma vida que se esvai…

Mataram-te, me disseram.

Quem ousaria? Que fiz de mim? Porque esta dor que insisto em não sentir?

Estou só. Beijo a morte e em vez de esperança busco uma solidariedade que inexiste.

Mataram-te.

Mataram-te…

 

Mataram-te…

E entrego o meu coração para percorrer os campos do inifinito…

 

 

Little Joy

 

Está escrito nas ruas, nas luzes e escuros, nos silêncios urbanos. Está escrito no vento que atravessa até os ossos. Está escrito no frio de janeiro. Está escrito na quietude da noite. Está escrito nas caras inchadas dos mendigos, nas perebas blenorrágicas e sanguinolentas. Está escrito na chuva que torna tudo mais leve, mais vistoso, levemente impressionista. Está escrito na arquitetura da cidade, na serenidade das coisas intangíveis. Está escrito nos sons inaudíveis da noite, nos roncos inocentes das crianças, na paz estimulante dos cemitérios.

O carro vara a noite eu sinto: ela está viva e me beija com sua alma esperançosa. Tão inculta e bela. Tão injusta e terrível. Assaz encantadora, embala-me com teu canto sirênico, com tua piedade atroz e indirecionada. Ah! Como todos são injustos com tua candidez! Como zombam por seres impiedosa…

A cidade está viva e teu coração pulsa na cadência dos que a constroem todos os dias. E sua alma vive com os sonhos dos seus filhos que afloram dos seus campos cerrados e das suas avenidas intransitáveis. Tuas lágrimas me guiam enquanto vivo contigo a expectativa de uma nova alvorada. Esperança: dizem que tu és capital. Vives dela, és tua irmã, és tua amiga e confidente. És teu espelho e com tuas asas guia uma expectativa renovada de mudanças.

Quero-te. Amo-te como nunca amei nada intangível. És a estrelas das impossibilidades, metade de meias-verdades. És um canto negro, embalado pelos martelos e enxadas dos candangos.

Despedida

Pensar não custa o silêncio, ela disse. Ele pegou o retrato dos dois sobre cômoda e olhou por muito tempo. É tarde, ele disse, preciso ir. Entreolharam-se. Não sabia ele se dava um beijo, um aperto de mão ou se saía dali sem nada dizer. Não era muito bom com emoções, ambos sabiam. Ela continuou olhando pela janela. Não dizia nada, não aparentava nada. Isto o deixava maluco. Sentou-se novamente e acendeu o cigarro. Estava escuro. Faça como quiser, ela disse. Levantou-se e foi à cozinha. Quer chá? Não, obrigado. Havia muito nãos naquela relação, ao menos para ele. No começo aquela distância deu uma sensação de mistério. Parecia que cada dia seria uma surpresa, aquela mulher seria uma surpresa constante. Porém, aos poucos ele percebeu que era árduo, que todo novo contato era uma dificuldade, que havia mesmo uma grande distância que ela insistia em colocar entre eles. E isso significava que não havia amor. E não podia haver notícia pior do que aquela. Por outro lado, todas as vezes que ele instintivamente tentou se livrar dela, não conseguiu. A vida dele era impregnada do seu cheiro, dos seus olhos castanhos e das sardas multiformes do seu rosto. Ele era um romântico incurável. Ela uma niilista incurável. Eu trouxe para você mesmo assim, ela disse. Sentou-se com ele na mesinha de canto do apartamento. Olhou-o fundo nos olhos. Silêncio. Sabe de uma coisa? Ele balançou a cabeça, interrogativo. Amanhã deve fazer sol. Ele fez uma careta. Não era isso que você queria ouvir? Silêncio. É tarde, eu devo ir. Você vai ficar, disse ela tranqüila. Ele levantou-se resoluto, derrubando a xícara já quase vazia. Ficaram os dois olhando o filete de chá escorrendo pelo chão. Nada disseram. Ele levantou-se e foi à janela com o rosto entre as mãos. Queria chorar, mas nunca ninguém lhe ensinou como se fazia. A vida o tinha moldado para ser duro, para ser inflexível, mas aquela mulher estava se mostrando mais dura do que qualquer coisa que ele já tivesse agüentado. Ela se levantou, pegou um pano na cozinha, limpou o chão e apagou as luzes. Vem pra cama, ela disse, amanhã tudo vai ser diferente. Silêncio. Ela se foi. Ele levantou-se, colocou o casaco e foi até a porta. Pôs a mão na maçaneta e pensou muito antes de sair. Ela ouviu tudo, quieta, deitada sobre a cama e olhando fixamente para o teto. Amanhã deve fazer sol, amanhã deve fazer sol, amanhã… ficou repetindo a si mesma entre lágrimas e soluços.

Da canção da noite…

Existe a essência e sobre ela eu não digo muito. Sinto. E existe o peito que bate fraco enquanto imita o descompasso de um amor pejorativo. E existe a dúvida franca, irmã que é da pureza e do desamparo. E existe o vento que toca a face augusta, com um encanto tão fugaz, que se liquefaz em gotículas de silêncios.

Existe o pensamento, o fio da meada que não se perde, nem se ganha. Existe o assalto ao eu-lírico. É um assombro! Uma indecência! Uma vulgaridade expor uma nudez tão profunda que profana e expõe minhas sinapses mais elementares.

E existe a boca que conquista a loucura e sensatez com o mesmo e desesperado ato de coragem. Ah, a intrépida ousadia dos jovens! O desapego dos sonhadores! O solilóquio das profusões interiores expostas em sangue e mel…

Indômita. Cai a noite e o pranto contínuo dos que têm fome devora o mundo com seus significados. Nunca tive solidão, ela diz. Sempre tive um braço forte para me levar nas noites pelo mar bravio. Nunca tive companhia, eu digo. Sempre errei solitário pelas noites da cidade em chamas. Jamais houve o que me aplacasse a dor e o prazer de ser quem sou.

Quem sou? Olho-me perdido no espelho e não reconheço a face enrugada dos meus infortúnios. Não vejo nos meus braços cansados o motivo de tanto desassossego. Ela me queria? Ela me esqueceu? Nada existe que não seja a pena que escreve alucinada neste pergaminho.

Eu sou o livro. Eu sou a face. Eu sou o verbo.

Eu sou a palavra encantada que é proferida na noite. Eu sou o mago. Eu sou o fim.

Reviro-me na cama acostumando-me a repetir pesadelos à exaustão. Onde errei, me diga?

Eu sou a porta. Eu sou o prédio. Eu sou a chave.

Eu sou a ponta morta do futuro. Eu sou o retalho da tua pele que arrancastes na hora de aflição.

Diga-me outra vez: amor. Diga-me outra vez: perdão. Diga-me sinceramente que te lembras de mim, que existes, que és… Que erras.

Ou minta que queres… É o que me basta.

A flor que em guarda

aguarda o beijo, temido

tem medo, sufoca

se esforça pra ser

    [mais]

 

        e eu canto à primavera

        mascarado, sucinto

com as cores mais belas

e terríveis

                [vindouras]

na boca, entre os dentes

um sorriso de escárnio

uma armadura e um gládio

prontos para a luta ao luar

        [infames]

E canto à primavera,

Porque sem ela

nem cor, nem beijo,

nem amor, nem sentimento,

nem nada

        [impávida]

Canto a ti, flor silvestre

que aos cantos colores quando vestes

as cores da paz e da guerra

ambivalente, pelos prados, pelas ruas

pelas casas das paixões que invades, nua

em pétalas e caules…

            [pendão austero e auriverde]

canto a ti, flor augusta

que com o fulgor de tenra idade

és eternidade, qual o amor

                [fugaz]

e quando canto a ti

quando sorris na cidade

embalsamada pelo concreto

de outro dia perdido

dás um grito inaudível, um gemido

um sussurro…

            [suicídio]