A Raiva é uma televisão em tons de cinza

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A raiva e suas variações – a cólera, a agressividade, a competitividade, etc – são as únicas formas, as únicas cores de sentir permitidas ao homem do patriarcado.

E por mais que essa submissão soe um pouco inadequada à própria construção clássica da masculinidade, é preciso entender que ela não permite escolha. De fato, principalmente nos anos de formação da personalidade, a pressão social para adequação a certos papeis e expectativas de gênero são tão fortes e arraigadas socialmente que são naturalizadas.

A necessidade de adequação molda padrões de comportamento e de conduta que acabam interferindo decisivamente na capacidade de lidar com a complexidade de sentimentos e sensações experienciadas no mundo e comunicabilidade dessas experiências para nós enquanto indivíduos.

A raiva – enquanto imposição do patriarcado aos homens – mutila as possibilidades de ser, estar e permanecer no mundo e acaba se retroalimentando, já que a insatisfação dos sentimentos que nos afetam todos – frustração, tristeza, inadequação, impotência, injustiça, medo, etc. – se transforma, no motor de mais insatisfação, que é expandida em expressões de raiva.

Os homens permanecem putos. Este sentimento, identificado como o único realmente másculo, precisa estar permanentemente presente, como uma lembrança perene de que, a qualquer momento, aquele indivíduo estará pronto para uma reação – certamente violenta – para expor e impor sua virilidade.

A imposição da virilidade pela violência verbal, física ou simbólica ao outro ocorre tanto no nível individual, onde a permanente afirmação da virilidade é também a defesa de um lugar de privilégio do mundo – o macho alfa, o que é sempre escutado, o que tem a última palavra, o que tem sempre razão – mas também no comportamento de grupo, na afirmação necessária do pertencimento – ao clã, à gangue, ao grupo, ao partido, à irmandade dos homens, sempre prontos a se defenderem – mas também pela exclusão. O grupo se configura como experiência de distensão, de rivalidade, de torcida, de coro, de violência.

A experiência masculina propagada pelo patriarcado é uma experiência de violência. E é uma experiência que se retroalimenta num ciclo perpétuo de aprofundamento da violência como forma de ser, estar e permanecer no mundo.

Mas tem a quebra. Sempre, na experiência de mundo, existe algo que não pode ser compreendido pelo viés da violência. O mundo sempre vai ter cores além do cinza. Mas, inadequados, incapacitados e mutilados de nossa visão colorida dos sentimentos, nós homens só sabemos trabalhar com a raiva.

Vamos a um exemplo. Em algum momento, todos lidamos com a perda. A perda nos traz vários sentimentos conflituosos: a tristeza, a solidão, o vazio no peito, o próprio despedaçar. Mas a reação a esse sentimento costuma vir em dois vieses: a negação – e consequente introjeição destes sentimentos, com perigosos efeitos colaterais psicossomáticos – ou a expressão da frustração por meio da raiva. O choro, quando vem, não é um choro libertador – de lavar a alma – mas um choro embalado da frustração da sua própria capacidade de resistir ao choro. Afinal, homem não chora.

Vem a partir daí um sentimento de castração, já que esses sentimentos, não sendo masculinos, se contrapõem à identidade do sujeito como homem patriarcal. E isso tem outros efeitos: a reação violenta, ou contra quem causou a perda (o que está por trás de muitos, muitos casos de violência doméstica), contra os símbolos (a violência contra as causas feministas, por exemplo) ou contra si mesmo, numa autoimolação, num sacrifício pela causa da masculinidade patriarcal.

É preciso dizer que isto está no cerne da desproporcional taxa de suicídio entre homens jovens em relação à população geral.

Ok, apresentamos o problema. Como resolvê-lo? A resposta não é simples. Passa por pelo menos quatro etapas que se sustentam mutuamente:

1 – Apresentar aos homens jovens uma pluralidade de masculinidades. De fato, a experiência de ser homem no mundo não se encerra em um único jeito, em um único papel. As vidas e experiências dos sujeitos no mundo que são únicas e, portanto, devem ser valorizadas

2 – Ensinar a todas e todos a nomear e comunicar os sentimentos. Com isso, a caixa única da raiva se transforma em um ponto de vista de mundo que é mais complexo, mas também é mais preciso. Isso gera indivíduos mais preparados para lidar e experimentar o mundo

3 – Produzir homens que admiram e amem verdadeiramente as mulheres. Várias autoras feministas afirmam que os homens só se amam e admiram mutuamente. Homens só leem homens, só citam homens, só conversam com homens, só confiam em homens e se defendem mutuamente – a famosa broderagem. Por outro lado, até por uma questão de sobrevivência, as mulheres têm sido muito melhores em lidar, comunicar e trabalhar com a complexidade dos sentimentos. Quebrar o jogo meninosXmeninas e produzir um mundo de confiança mútua é uma forma de expandir também as maneiras de ser, estar e permanecer no mundo, ajudando a produzir uma sociedade menos violenta. E isso inclui, claro, ler autoras feministas, como Lélia Gonzáles, Maria Lugones e bel hooks, só para dar três exemplos.

4 – Criar espaços e situações para dialogar sobre a complexidade da experiência de vida: de fato, existe pouco ou nenhum espaço real e prático para que os homens aprendam a se comunicar em um contexto de não-violência e que falem, de maneira franca, sobre o desafio de serem quem são, enquanto indivíduos no mundo. Espaços para o diálogo, para a fala, para a experiência com o diferente, são caminhos para descortinar os atributos que retroalimentam o ciclo da violência. A fala ajuda a lidar com a frustração, com a inadequação, com o medo, com a insegurança, com a perda da segurança (irreal) do espaço de conforto da sociedade patriarcal. Esses espaços podem tanto ser terapêuticos (e sim, eu sou um ferrenho defensor da terapia) quanto também espaços não formais, espaços humanos, de amizade.

Nada disso é simples.

A luta contra a imposição da raiva como sentimento único é diária.

Mas a experiência colorida da vida vale o esforço.

“E aí? Tá feliz?”

Eu sou uma pessoa de bordões. Eu tenho vários. Na festa dos meus 33 anos, nós fizemos desses bordões o enfeite das mesas. Não é que eu queira, mas de vez em quando eles surgem, em geração espontânea e eu acabo os adotando.

Um dos mais marcantes é esse aí do título: “e aí? Tá feliz?” Não devia ser uma pergunta difícil. Mas quem não me conhece e ouve essa pergunta pela primeira vez quase sempre toma um grande susto, como se a pergunta fosse muito íntima ou se nunca houvesse pensado nisso.

Ora, mas aí é que estamos, leitor e eu. O que é a felicidade? Eu não vou ser arrogante a ponto de tentar responder a essa pergunta. Porque eu francamente acho que o sentido de felicidade é uma construção individual, mediada (obviamente) pelos valores e crenças de cada um. E por isso mesmo, não deveria ser difícil ou invasivo responder isso. Daqui pra frente, vou falar sobre o que é felicidade para mim.

A felicidade não é, a felicidade está, porque a vida flui. Sendo assim, a pergunta não é se você é feliz. Porque o ser, enquanto verbo estacionário, não permite ação ou agência. Já o estado, sempre provisório, sempre influenciado pelo profundo e belo agora, exige ação, mesmo que seja para manter o equilíbrio precário.

A felicidade não acontece. A gente não tropeça na felicidade por aí. A felicidade se constrói, em pulsos, em ondas. Claro que a vida vai nos dando momentos memoráveis. Mas eles não são a felicidade. São marcos, elementos de composição, como cores de fundo, detalhes de algo muito maior que é a experiência única e irrepetível da vida.

A felicidade, como estado, só acontece quando a gente consegue ser sendo. Para conseguir ser feliz, é preciso um estado de presença, um consciência de si mesmo, um autoconhecimento das limitações e das potencialidades. A felicidade vai sendo cultivada, paulatinamente, pelo encarar-se no espelho, mas não como desafio, gládio, combate, mas pela reflexão, pelo trabalho de olhar-se multifacetado, no amor e na multiplicidade das contradições que nos tornam únicos.

Assim, a felicidade vai brotando de dentro da nossa presença do mundo. E ela brilha, destruindo as máscaras, as camadas, as massas corridas dos personagens que criamos para nós mesmos, e se configura nas rugas, nas marcas na pele, nas cicatrizes e nos olhares curiosos e voltados ao desconhecido. A felicidade não está no outro. Não está na coisa. Não está nos planos infinitos de nunca chegar. Está aqui, agora, hoje, nas escolhas que fazemos, na presença que podemos ter, na capacidade que todos nós temos de amar, inspirar, seduzir, compartilhar, dividir, sentir, impulsionar, aprender… a felicidade está onde nos fazemos mais vivos.

E aí? Tá feliz?

Minha trajetória como homem no processo de terapia

Caro colega,

Esta é uma conversa que eu gostaria de iniciar contigo, de homem para homem. Minha intenção é ser o começo de um diálogo difícil e franco que você precisa enfrentar de frente, com a cabeça erguida. Eu não vou julgar – sua criação, seus valores, suas expectativas e frustrações – muito menos vou te dar qualquer lição de moral. Vou fazer apenas o que nós homens deveríamos fazer com mais frequência e não fazemos: falar sobre o que sentimos e compartilhar experiências pelas quais passamos.

Histórias Que Conectam – Náufrago – AD'OR

Eu acho esse preâmbulo necessário porque eu demorei muitos e muitos anos até ir atrás de terapia. E mais alguns meses para aceitar o processo. E mais alguns anos para admitir que terapia é algo importante para mim e foi de tremenda ajuda.

A verdade é que homens jamais se colocam na posição de pedir ajuda. A gente é criado em uma lógica de valorização da força, da autonomia, de tomar decisões difíceis sob pressão, de nunca demonstrar nenhum sentimento que não seja a raiva. Veja bem, até as vitórias, quando são comemoradas, são expressões de raiva, gritos, pulos, até as lágrimas nesses momentos são apenas para exalar essa força, essa necessidade gutural de extravasar as sensações com fúria.

Quem nós admiramos? Homens que não se vergam. Passamos pelo sofrimento, sozinhos, porque isso que molda grandes homens. Admiramos os homens que, em nosso imaginário, sacrificam-se dia a dia trabalhando para sustentar a família. Nossos modelos, desde a infância, são homens fortes, decisivos, seguros, confiantes, corajosos. Valorizamos o heroísmo, aquele cara que é capaz de pular num prédio em chamas para salvar um gatinho. Esse é o nosso ideal, ser aquele cara lá, que aparece nos filmes, mas também nas histórias da vida real.

E eu fui criado pra ser assim, exatamente desse jeito. Eu fiquei mais de vinte anos sem chorar. Ainda hoje, é muito difícil, por exemplo, diferenciar se o que eu sinto quando eu perco em um jogo importante é raiva, frustração, vergonha, despeito… Se eu não sei nem identificar que tipo de sentimento eu tenho, como eu vou conseguir falar sobre isso?

Porque, na real, as emoções humanas são muito complexas. E quando a gente não aprende a identificar as emoções, lidar com elas e dar-lhes um peso diferente em cada situação, ficamos permanentemente em um fluxo de instinto animal. Só nos resta lutar ou fugir. Mas o homem não foge, o homem luta.

Pacquiao vence Thurman por pontos e conquista cinturão da Associação  Mundial de Boxe | boxe | ge

Mas como a gente luta contra alguma coisa que não pode ser vencida? Por exemplo, o processo de luto por alguém importante? Uma doença incurável? A nossa incapacidade física de conseguir cumprir um prazo com o qual tínhamos nos comprometido? O fim de um relacionamento conturbado?

Eu não sei você, mas pra mim tudo era raiva. Ou pelo menos eu chamava de raiva. E com o tempo, fui criando diversos inimigos internos que foram me sufocando. Eu cheguei ao meu limite. Na verdade, eu passei muito, muito mesmo do meu limite. Eu só aceitei ajuda quando não havia mais nenhuma alternativa.

Nenhuma. Porque, para mim, ir para a terapia era admitir minha derrota. Ir para a terapia era enfrentar o meu maior medo, como homem: o de ser visto como alguém vulnerável. Eu só fui para a terapia quando eu me enxerguei como um caco da pessoa que eu fui e não via mais nenhuma alternativa para ser alguém de quem eu minimamente me orgulhasse. Pesado, né? Eu espero que você não chegue a tanto.

Então, eu entendo quando você diz que não quer ir. As minhas desculpas provavelmente eram bem parecidas com as suas: tinha preconceitos com o processo terapêutico, achava um desperdício de dinheiro e tempo, não confiava em ter minha intimidade aberta para uma outra pessoa (mesmo uma profissional da área), se era pra conversar, podia conversar com meus amigos no boteco… eu poderia ficar aqui mais de uma hora escrevendo motivos para não ir a nenhuma sessão.

E digo mais, eu tinha tanta certeza que ia dar errado, que mesmo quando fui eu comecei a sabotar o processo todo. Testava minha terapeuta (sim, é uma mulher), ficava em silêncio, ficava inquieto na cadeira, olhando pra outro lugar. Olha, hoje eu tenho muita, muita vergonha de tudo isso. E muito dessas ações era inconsciente, sabe? Era eu tentando provar que nem a terapia me ajudaria.

E teve um dia eu disse pra mim mesmo, em uma dessas terapias, algo sobre tudo o que eu estava sentindo, que fez todo sentido. Quando ela me perguntou o motivo dessa raiva toda, eu fiquei pensando, matutando. E eu disse que eu sentia muita raiva porque eu era incapaz de me perdoar. Não sei como é pra você, caro amigo, mas pra mim, aquilo foi como desarmar uma bomba. Porque, puxa, eu não era nenhum serial killer, chutador de filhotinhos de cachorro ou banqueiro, eu merecia algum perdão.

Como Exercer o perdão? O que a Bíblia nos fala sobre isto? - Igreja  Remanescente Dualista dos Primogênitos

Claro, esse foi meu insight. O seu pode ser outro, sua questão pode ser outra. E tudo bem. O que quero dizer é que, se eu tivesse passado por esse processo terapêutico anos antes, minha experiência com a minha própria vida seria muito mais interessante, intensa e presente, como ela é hoje.

Isto porque, quando você aprende a ler os seus sentimentos e dar uma dimensão justa e equilibrada do que te acontece, a vida deixa de ser essa eterna luta (afinal de contas, nós homens enxergamos tudo como luta) e passa a ser algo a ser vivido e aproveitado. E você se torna uma pessoa mais integrada com quem mais importa, aprende a rir das vezes em que você falha, aprende a olhar pra você mesmo não como um homem ideal, mas como alguém único, cheio de contradições e tá tudo bem ser assim.

Eu não estou dizendo que vai ser fácil, nem que vai dar certo com a primeira pessoa que você tentar. Eu estou dizendo que para mim funcionou muito bem e eu acredito que você possa aproveitar isso se você for um pouco menos cabeça dura e deixar o processo acontecer.

Mas você não precisa ficar só com a minha palavra. Converse com seus colegas, seus amigos, sobre isso. Ouça, pergunte para quem passou pelo processo terapêutico como foi, quanto tempo durou, se tem alguma sugestão. Leia sobre isso, procure informação e abra a sua cabeça a essa possibilidade. Converse com sua companheira (ou seu companheiro). Saia um pouquinho da sua zona que você ainda acha que é de conforto. Faça isso com o coração aberto.

Eu não sou especialista nisso – eu sou só um professor de matemática – mas se quiser bater um papo, me adiciona lá no Instagram que a gente pode conversar um pouco sobre isso.

Se esse texto te ajudou de alguma forma, compartilhe ele com alguém. Pode ser que tudo o que alguém tá precisando para mudar sua vida é ler algo assim, dito com toda franqueza. Te desejo o melhor.

Abraços

Ulisses Dias

Professor de Matemática, poeta e fazendo terapia há quase três anos

Ulisses de Ítaca

Errante herói grego jaz na epopeia, desde nascido

Com Palas Atena mimeticamente deposado

Num triunfante ardil que troianos pôs à deriva

Num longínquo tempo de heróis guerreiros e cidades-estado

Eis que então me espelho em terras novas

Que de brasis madeiras e sangue pisado e misturado

Outra Ilíada se arredonda, errante e torta

Inversa de heróis, deuses, homeros e faustos

Sangra a terra de orixás aqui nascidos

Xangôs, tacapes, curupiras e abaporus

Batem talismãs nas selvas, tremem de fulgor os rios de lama

Chora Poseidon no mar negrado, nem Iemanjá levanta a fronte

Quando o inimigo eleva acima do horizonte

O perigo etéreo de queimadas,

Hostes famintas

Famílias aflitas, alijadas de seus filhos fuzilados.

Nessa terra encantada e generosa,

A nuvem plúmbea estaca em polvorosa

Com seus malditos olivais e olavetes,

Perversos filhos de Ares, mantendo o prumo com cassetetes

Na fronte do seu povo derrotado.

Mas há um espectro multicolor que cega a nuvem,

Que vem da maré, favela, calor e negrume

Voz que brame de dentro do sepulcro

Mulher heroica, tecendo um fulcro a partir do seu discurso silenciado

Ela é a noite, a glória, a fé e o símbolo

Que une o povo no levante, cavalo helênico

Quadro-Delacroix sanguinolento

Em uma França austral ajoelhada.

Marielle vive, encanta e incomoda

Teu suplício batiza em sangue o eu-poeta

Lirismo que brame a apoteose

Cada teatro: praça de guerra.

Resiste o povo então pungente

Um rastilho de pólvora inconsequente

Espera o momento oportuno.

Então agora, no meio da batalha

Irmão e irmã, divorciados, marcados à navalha

Abrem os olhos um a um.

Bramam as selvas, levantem-se os heróis de outrora

Teu povo demanda, sem demora

O tributo do auriverde panteão

Zumbi, Tupã, teus filhos te suplicam

Quitéria, irmãs de armas, Diadorim do infinito

Tuas lanças nos salvarão, abram teus mares.

É hoje, meus amigos, a história

Não percamos, impassíveis nossa hora.

Início do dia

A vontade de dormir abalar os ossos desde quando acordo. Sigo os dias alquebrado, roendo as unhas em busca de um sentido para os dias. Lentamente me banho e me recomponho de historias. O sorriso falso quase me convence quando passo o dedo no espelho embaçado e me reconfiguro.

Um novo dia começa. Uma andança pela mesma cidade, pelos mesmos rostos anestesiados pelo sonho de serem reis de nada, crentes que estão com as mentiras que contam nesse nosso tempo.

Não sou assim. Sonho, é verdade, mas por eles não passa a solidão do homem que contempla o mundo do alto de seu castelo. Há abismos, florestas e mares vários em que me banho. Mas também há corpos multicores, sotaques e cheiros que me tomam.

Nada que seja só me contempla. Eu sou eu no outro. Encontro-me na loucura do conhecer-me nos olhos dos habitantes do mundo.

Mas às vezes cansa. É difícil mascarar o desejo de mudança à necessidade de quebrar as correntes que docemente me prendem. Nos falta coragem de largar uma ilusão de equilíbrio.

E assim, perco meus dias e me acostumo a recontar as mesmas histórias.

Mooca

Certo que as luzes viram noite

Quando a Paulicéia pulsa noutro ritmo

Eis que me viro sombra, tentáculo.

Percebo na outra um cheiro de passado que permanece.

Que é o tempo?

Sou eu com minhas andanças

Pernambucanas

Sou eu com minhas miçangas

Baianas

Com minhas espiritualidades

Ciganas

Possuo o céu em meus braços cálidos quando o cheiro na noite me oscula o colo

Cão sem dono do esquecimento

Tombo em auroras de um passado meu, vivendo um presente que é nosso.

Paul Ricoeur nos banha com isso: narrativas.

Quero o pendão solitário de uma noite pungente

Paixão atroz com realidade ausente

Vivo o sonho e esqueço em realidade quem sou

Intenso e Belo

Filhos dos meus orixás

Danço no bairro operário produzindo novas histórias

Novos presentes movidos pelo mecanismo inexplicável do tempo

Eis-me aqui, com as flores

Do mal, obviamente, mas ainda flores vencendo o canhão de Caetano.

Vivi, Eu sei. Vivi porque fui.

E agora, embriagado e moribundo, vegeto entre silêncios e versos

Sou eu, mas sou muitos.

Sou ópio, mas filho da Terra

E o vento é meu destino pelo céu

Transposição

Mundo muda no momento preciso

E a loucura é vertigem, que vira miragem: Tuareg

Vivendo  nas dunas amarelas do tempo que se esvai nos dedos.

Vi as cores que se misturam

Paisagens que se transformam

Tão iguais, mas tão únicas

Uma monotonia que é transposta no vento.

Dias iguais, dias áridos

Ciganos guerreando com cimitarras

Pelo pão ázimo que se desfaz nos dedos.

Mudança e estabilidade

Areia e tempo

Ampulheta precisamente apontada para o fim

Moto perpétuo de uma realidade fluida

Totalmente voltada para um desterro inóspito:

Desperdício de tempo, de juventude, de cor

De sustância

Mágica encastelada, esperando o feitiço para virar

Realidade.

A Montanha Mágica

Era 2004 e, no intervalo entre as aulas de Álgebra e Análise, eu me perdia na Biblioteca da UnB, na seção de literatura estrangeira. Foi ali que eu conheci Gabriel García Marques, Dostoievsky, Tolstoy, Nabokov, Hemingway e tantos outros. Minha alma precisava desse espaço, dessa loucura que só é preenchida pela literatura, pelas fantasias criadas nas mentes de outros.

E, numa tarde de agosto, me deparo com essa pequena advertência no Prólogo de um dentre tantos livros

Não será, portanto, num abrir e fechar de olhos que o narrador terminará a história de Hans Castorp. Não lhe bastarão para isso os sete dias de uma semana, nem tampouco sete meses. Melhora será que ele desista de computar o tempo que decorrerá sobre a Terra, enquanto nessa tarefa estiver enredado. Decerto não chegará – Deus me livre – a sete anos.

Dito isso, comecemos

Essa advertência explícita só me interessou menos do que o título do livro: A Montanha Mágica. Fascinado estava pela (não) coincidência entre o nome do livro e a da minha música preferida da Legião Urbana.

Uma longa canção de dez minutos, mas que é permeada por uma melancolia, uma desesperança, um sentimento tão comum dos adolescentes… quis eu saber quem era esse Hans Castorp e de que maneira ele influenciara meu ídolo adolescente.

E fui. Quem já leu Thomas Mann sabe que ele tem uma escrita muito sedutora. Esse jovem rapaz sem nada de especial, fruto das reflexões do autor, não é pincelado de maneira alguma diferente do que é: um rapaz ordinário. E mesmo assim, não conseguimos de modo algum nos desenlaçar dele.

Exceto se a vida, fora do livro, te traga. E foi o que aconteceu comigo. Depois de ler a terça parte do livro, findaram-se minhas duas semanas com ele e a faculdade de matemática se tornou pesada demais para que eu pudesse continuar a sua história. Foi muito penoso me despedir de Hans, mas não teve outro jeito.

Corta pra 2008, um belíssimo outono no Rio de janeiro. Praça Saens Pena. Não me restavam muitos trocados, mas quando vi aquele sebo improvisado na rua das flores, não pude evitar parar por um momento. E lá estava, encadernação azul puída, A Montanha Mágica. Um exemplar velho, surrado, que muito emocionou pelos seus singelos cinco reais.

Pus-me imediatamente à leitura. Voltei com graça ao prólogo e sublinhei a parte dos sete anos. Agora ia. Não foi. Mais ou menos na metade, o mestrado tornou impossível prosseguir.

2009, A Montanha Mágica volta comigo no ônibus da Itapemirim pra Brasília, dessa vez eu devo ter lido quase a metade. Mas havia ali alguma vergonha. Foi a primeira vez (no caso a segunda) que eu não consegui terminar um livro que eu tinha gostado tanto.

O livro foi tomando poeira na estante. 2011, eu volto ao Rio, agora definitivamente, e A Montanha Mágica permanece em Brasília: um monumento à minha vergonha. 2012, 2013, 2014… dezembro. Eu volto de carro pra casa dos meus pais e vejo ali a oportunidade de levar minha biblioteca pro Rio. O carro volta abarrotado pela BR-040.

Casa nova, livros na estante, 2015, férias. A Montanha Mágica estava na estante e eu tinha comprado uma cadeira confortável só para ler. Comecei de novo. Terceira vez que leio o prólogo. Terceira vez que eu começo. Mas… mas eu sou outro. Mudanças em mim começam a se configurar e antes que eu visse, 2016 veio mudar tudo. Fim de casamento, um novo amor. A vida estava intensa demais para conseguir dar plena atenção ao livro. Não passei das primeiras páginas.

E veio o doutorado. A leitura única do assunto da tese me exigiu uma escapatória. Minha alma precisava respirar. Mas eu já não conseguia organizar tanto meu tempo. Vivia carregando muitos livros de educação que e lia no tempo que dava, trabalhando como estava. E a namorada me deu um Kindle…

Fui procurar sites para baixar e, por curiosidade, procuro lá o renomado livro. Estava a um clique do meu novo brinquedo. Folheei – se é que a gente pode usar essa expressão nesse caso – as primeiras páginas e lá estava, no final do prefácio, a advertência dos sete anos. Já demorava mais de dez.

Comecei, sem pressa. O bom do Kindle é que ele sempre guarda a última página e A Montanha Mágica foi se tornando um desafio e um deleite. Lia-o junto de vários outros. Li-o junto de Lavoura Arcaica, de Os Sertões, de Grande Sertão Veredas. Era um livro de prazer e não de obrigação. Eram 801 páginas que eu ia galgando lentamente, quando dava tempo, quando queria retornar à história ordinária desse rapaz comum.

Defendo do doutorado dia 16 de agosto de 2019, uma belíssima sexta-feira. Já tinha lido 60% do livro (a tecnologia agora consegue fazer com que a gente mensure exatamente quanto falta). Fui trabalhando com outras coisas, e lentamente avançando no livro.

70, 80, 90% completados ontem. E hoje, depois exatos 15 anos, termino. Extasiado e emocionado. E percebo, uma vez mais, o poder da boa literatura para fazer sonhar.

 

 

 

Extremo

Tenho querências que consomem
Venho então em luta inglória
Viro fogo abrasador, viro miragem e ruína
Marujo sem embarcação…
Perco-me divagares
Monto em todos os lugares
Pouso para minha alma só.
Vivo em pulsos
Meço as coisas pelos tremores
irremediáveis que causo com meus olhares…
Crepito.
Temo a alma só

Temo o futuro

Prefiro as certezas vagares
e
igualmente repudio a mesmice tediosa

A falta de coragem

Vivo em extremos que me sugam.
Isso posto, me objeto…
Sou o que faço em mim palavra e medo
Sou o espelho tapado para uma verdade irresistível
Sou castelo de cartas
Vivendo o momento antes do sopro derradeiro…

Barqueiro no mar bravio

Anunciaram a tempestade

Previram o desastre

Disseram: “é inútil navegar”. Não os ouvi…

É forte o nevoeiro e a aurora agora é lembrança distante…

O desespero não ajuda nas perspectivas!

Creio no meu barco, meu barco balançado pelas ondas

Não estou só…

Nunca estive só…

Marujo, com marujo, uma tripulação sem capitão: uma senda de iguais

Uma carta náutica velha, alguns cacos de astrolábio

E sorrisos!

Irmãos meus que fiz na vida

Banham-me o rosto com sal e o sorriso com pérolas!

A tempestade vem, é certo…

Mas sobreviveremos

A tempestade vem, é certo

Mas não será a primeira, nem a última, nem a pior, a mais forte.

É preciso navegar…

E virá à tormenta

E estaremos juntos

E quando acabar, ah! Quando acabar!

Será nosso papel contar as histórias…

Um papo sobre disciplina – Parte 2

Começamos esse papo bem aqui falando sobre uma experiência em sala de aula em que a disciplina foi questionada pelos licenciandos que acompanharam minha turma no distante ano de 2015. Hoje, a ideia é tentar discutir sobre a disciplina por um outro viés: buscando entender de que forma o professor, em sua sala de aula, pode desenvolver a disciplina necessária para realizar tarefas efetivas com seus alunos.

Mas, antes de fazer isso, a gente precisa deixar claras algumas concepções minhas, enquanto autor. A primeira e mais importante delas é a minha concepção (deliberadamente eu evitei a palavra definição) de ambiente escolar disciplinado. Para mim, uma sala disciplinada é aquela em que todos estão envolvidos nas atividades propostas pelo professor e todos estão se evoluindo. Dessa forma, eu não considero que um ambiente disciplinado seja um local silencioso e asséptico em que uma figura – o professor – possui todas as atenções e os alunos, passivamente, aprendem. Para mim, um ambiente de aprendizagem possui uma certa vibração, um desequilíbrio próprio de processos pedagógicos acontecendo. Alunos passivos não aprendem, eles, quando muito, repetem.

Você tá ensinando seres humanos ou treinando papagaios?

Mas isso quer dizer que eu considero que as aulas de matemática devem ser focadas em atividades lúdicas, em que os alunos estão construindo conhecimento por si mesmos? Não, pelo contrário, eu acho que o papel do professor é fundamental, mesmo nas abordagens construtivistas, mesmo quando está propondo atividades para desenvolver a autonomia, mesmo quando as condições são difíceis ou utilizando estratégias como a sala de aula invertida. E concordo que muitas vezes é difícil fugir de uma aula expositiva cuspe e giz. Mas mesmo nesses momentos, uma turma disciplinada está longe de ser uma turma silenciosa.

E aqui vai a segunda concepção: um professor, como profissional da docência, não silencia seus alunos, porque sua primeira qualidade é a escuta. É a partir da escuta que se percebe o que se sabe ou não, se replaneja o conteúdo, se transforma a abordagem, se explica de novo de uma outra maneira, etc.

E, quando estamos numa turma complicada, com muita bagunça, é muito fácil ceder à tentação de fazer um teste surpresa muito difícil para ferrar com a turma e conseguir o respeito deles. Deixa eu te falar uma coisa, você não consegue. Ao contrário, você perde todo o respeito deles e, quando muito, consegue amedrontar alguns. Porque todo professor é uma autoridade, mas sendo autoritário o seu resultado é o silêncio daqueles que querem aprender, mas não conseguem, e o escárnio daqueles que querem tumultuar e conseguem. Nada além disso.

E deixa eu te falar uma outra coisa que você provavelmente não vai gostar: a culpa é sua… também. Calma, calma, não me apedreje ainda, deixe-me explicar. Ao longo de minha carreira – não tão longa, mas bastante intensa e interessante – eu conheci vários professores que tinham o mesmo discurso: “meus alunos são terríveis”, “eles não fazem nada direito”; “o problema é a escola que não reprova mais”; “o problema são os pais, que não educam mais e deixam essa tarefa pra gente”; “o problema é que não fazem logo a redução da maioridade penal para levar esses delinquentezinhos todos pra cadeia, que é o lugar que eles merecem”; “o problema é da direção que não expulsa esses filhotinhos de bandido com coisa ruim”; “o problema é…”.

Medo dessas pessoas aí…

Percebem? O problema é sempre o outro. Nos discursos desses professores, que se dizem disciplinadores, nunca são eles os implicados em tarefas de mudança. Eles se colocam como vítimas: de um sistema cruel e opressor que não pune aqueles que não se encaixam no perfil. O sonho desse professor – quase sempre homem, por isso aqui sublinho seu gênero – é escolher seus alunos a dedo e mostrar que, sim, quando as condições são perfeitas, quando ele tem poder total e absoluto, as coisas funcionam. Mas é muito fácil ser o professor perfeito quando você joga fora todos os elementos que fracassam no seu plano, não é mesmo?

Como diria minha avó: Quando você aponta um dedo pra alguém, acaba apontando três para você…

Eu não estou dizendo que a culpa é toda sua. Vamos fazer o seguinte, vamos esquecer esse lance de culpa um momento e focar no que é mais importante: a ação. O professor é o profissional e ele quem pode agir para conseguir transformar. Consciente ou inconscientemente, todo professor é um agente de transformação em seu ambiente de trabalho. E é melhor que ele aja com método, de modo a mensurar – mesmo que incompletamente – o peso de suas ações e reforçá-las ou modificá-las.

Então, acho que nós docentes temos de superar a discussão de quem é a culpa – porque aí sempre vai ter um agressor e uma vítima, normalmente o professor, que sempre se enxerga como o lado mais fraco nessa história – e pensar o que nós vamos conseguir fazer com as condições que nós temos.

Deixando claro que eu não estou abrindo mão da responsabilidade dos outros agentes: pais, corpo docente, servidores administrativos, direção da escola e, principalmente, os alunos. Nos próximos textos eu vou falar um pouco sobre o papel de cada um deles, mas eu acho que seria coerente e de bom grado começar conosco.

Por isso, eu reforço a questão do método. Porque, provavelmente, não vai ser a primeira coisa que você vai tentar que vai funcionar. Quando você tem uma turma difícil, é preciso muito empenho, por um longo período, antes de conseguir notar resultados. E, pior, quando você começar a notar mudanças, pode ser que de uma hora pra outra você perceba alguns passos atrás. Agir com método implica em conseguir compreender os erros e aprender com eles. Agir de maneira não pensada significa ficar à mercê de condições não planejadas, com resultados imprevisíveis.

Mas, principalmente, é preciso ter em mente que não é qualquer ação. Porque, por mais que você queira o silêncio em sua turma – que eu concordo, ajuda a trazer uma certa paz de espírito necessária à sanidade mental – a educação das suas crianças é importante demais para que você aja de modo autoritário e silencie aqueles que querem aprender e não conseguem. É sempre esses que você deve ter em mente.

Ok, Ulisses, mas chega, né, vamos logo aos finalmentes, senão ninguém vai ler essa parada até o final.

Tendo todas essas questões em mente, nesse e nos próximos textos, eu vou apresentar algumas técnicas que eu já utilizei para conseguir melhorar a disciplina em minhas turmas e que aprendi conversando com outros professores. Essas técnicas são, portanto, tão deles quanto minhas. Por uma questão de espaço e foco, apresento apenas uma delas aqui.

Técnica 1: O Estetoscópio Onipresente

Quando comecei a trabalhar em sala de aula, eu tentava – de uma maneira vã e inconsequente – falar mais alto que todos os meus alunos. Vã porque é uma tarefa impossível. Inconsequente porque, na minha inexperiência, eu achava que minha voz de baixo, temperada em corais e cursos de teatro poderia sobreviver a qualquer coisa. Ledo engano…

O nome Estetoscópio Onipresente foi inventado por mim e é totalmente minha culpa, mas a técnica em si já foi passada a mim por vários professores ao longo dos anos. A ideia é bastante simples: quando a sala de aula ficar um caos e todos os seus alunos começarem a falar ao mesmo tempo, você simplesmente escuta. Escuta com a atenção que um médico escuta seu estetoscópio – afinal de contas, toda a técnica consiste em fazer um diagnóstico, do mesmo jeito que o doutor {que pode ou não ter doutorado} faz. E onipresente porque você deve tentar ouvir além das vozes individuais, mas entender as relações – de poder, de ordem, de desespero existencial – que existem naquele lugar.

Como assim? Diagnóstico? Relações de poder? Virou sociologia?

Sim e não. A sala de aula é um espaço social e deve ser encarado assim pelo profissional docente. E sociedades não são homogêneas. É um erro crasso achar que todos os seus alunos são iguais. Longe disso. Se você escutar atentamente, você verá que esse caos não é tão caótico assim. Existem grupos dentro desse caos que você deve conseguir identificar.

Entendeu agora porque você viu [ou deveria ter visto] sociologia da educação na licenciatura?

A bagunça é generalizada, mas os carbonários que a causam, não. Mas também é um erro ficar focado só neles, justamente porque muitas vezes o que eles querem é apenas e tão somente atenção. Não dê a eles o que eles querem, afinal de contas você deve ser onipresente.

E os outros? Ouça os outros. Porque os outros estão falando? É um comportamento de grupo? Duvido muito. Há aqueles que não perceberam que você está ali; há outros que estão apenas querendo testar você; há outros que só conhecem a linguagem da violência e sabem que para ser ouvidos eles precisam falar mais alto; e há outros que mesmo no meio desse caos permanecem em silêncio, sem se relacionar. Você deve tomar cuidado com eles também.

Para que o estetoscópio onipresente funcione, você precisa manter-se impassível enquanto escuta. Sua expressão deve ser séria, mas não irritada. Não pode ser serena (senão isso significa que você aprova o que está acontecendo) nem desesperada (senão eles percebem que estão conseguindo te influenciar). Fique de pé, olhando para eles e espere o quanto for necessário.

Espere.

Eu já esperei por 20 longos minutos, em pé, impassível, olhando para eles e os escutando.

Mas uma hora eles todos param.

E aí você tem a atenção deles.

E é aí que você age. Dando um puta esporro neles todos, certo?

Errado.

Você tem de manter o sangue frio, brow, senão o caldo desanda e a rapadura fica azeda.

A grande questão é que uma turma indisciplinada está testando você, tentando mexer com suas emoções. E poucas coisas são mais excitantes para esses alunos do que verem você perder o controle. É justamente o que eles querem.

E aí, o que você deve fazer é dizer o que te chateou, mas sem alterar seu tom de voz. Você deve dizer isso de maneira lúcida e calma, tentando evitar fazer acusações (que serão respondidas por um adolescente que vai querer falar alto e vai criar o caos de novo) mas apenas descrevendo o que você viu e não gostou. Explicar quais comportamentos não vão ser tolerados daqui pra frente e, por fim, expor seu diagnóstico.

Os alunos precisam perceber que você prestou atenção neles porque, provavelmente, eles estão acostumados a serem ignorados. Perceba, você deve surpreendê-los, fazendo algo inesperado. Deve se mostrar disponível a ouvir (viu que a analogia do estetoscópio é boa?) mas também deve deixar claro o que não é permitido naquele lugar.

E continuar sua aula, dentro do seu planejamento, com a mesma voz calma, virando para a turma e aguardando o silêncio para continuar e sendo inflexível com os comportamentos que você disse que não permitiria.

No começo é difícil. É uma prova de força mesmo. Mas, em pouco tempo, uma, duas semanas, se você continuar seguindo essa técnica, aliada a outras que eu tratarei mais para a frente, você já vai ver resultados.

Isso porque você vai ganhar o respeito de boa parte dos seus alunos. E você deve se lembrar que você é a parte adulta desse processo. Deve se lembrar que está agindo com método, ouvindo, aprendendo e modificando sua postura, com vistas a melhores resultados. E isso é um bom começo.

No nosso próximo post eu vou falar da minha segunda técnica: A Ola Desregulada.


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Um papo sobre Disciplina – Parte 1

Rio de janeiro, 2015

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Tinham acabado os dois primeiros tempos e o calor do Rio de Janeiro estava em ressonância com a animação dos alunos do oitavo ano. Combino com os estagiários de encontrar com eles depois do intervalo na sala dos professores. Sento na cadeira e antes que conseguisse estralar os dedos o intervalo acaba: tenho a impressão que ele não dura nem um parágrafo.

Saem os professores pras suas aulas, entram os estagiários. Nesse ano, por uma série de fatores, acabou que ficaram uns 6 alunos de licenciatura em Matemática acompanhando minhas aulas. Parecem discutir entre si. Parece que o intervalo foi bem mais longo pra eles.

– Qual é a treta hoje, galera?

Entreolham-se…

– Fala aí, gente. Foi alguma coisa na minha aula que eu não vi?

– A questão é que ele não entende como é que você deixa eles ficarem assim, no meio da aula…

Interessante perceber que quando o estagiário diz que o outro não entende, talvez signifique que ele mesmo não entenda, mas não quer admitir.

– Deixar os alunos como?

– Assim, soltos?

– Juro que não entendi.

– Na sua aula de hoje, eles ficaram conversando na hora do exercício. Tinha uns com fone de ouvido, a sala tava um barulho enorme.

– Mas era uma aula de exercícios, passei uma lista e eles ficaram fazendo.

– Eu esperava que eles fossem ficar em silêncio, fazendo os exercícios, no máximo conversando com o colega do lado. Você precisa fazer alguma coisa! Como é que você aguenta essa bagunça toda?

Olhei em volta. Eu gostava de sentar com eles nessa mesa porque era oval. Dava uma certa proximidade e um ar um pouco mais de conversa, que eu considero fundamental no processo de formação de futuros professores. Eles eram todos muito jovens, vinte e poucos anos.

– Mas então, qual é o problema? O barulho?

– O problema e a indisciplina, professor – outro estagiário responde – eu acho que a sua turma é muito bagunceira. A gente tem de planejar alguma coisa para resolver isso.

Ok, agora entendi o problema. Vamos dar um pouco de corda e ver onde isso vai parar.

– Então vocês acham que a turma é indisciplinada? E como é que vocês acham que os alunos devem se portar?

– Como alunos, ué! Sentados, trabalhando e fazendo exercício. Matemática é isso, né, fazer muito exercício para aprender.

Outro estagiário assente:

– Sim, eles estão aqui pra isso. Para aprender

– Concordo que eles estão aqui para aprender e concordo que é importante fazer exercício. Mas, me digam, qual é a postura que vocês esperavam desses alunos? Aconteceu algo inesperado, né? Por isso a discussão…

– Silêncio, respeito, disciplina, foco. Nada de aluno andando pra lá e pra cá.

– E como é que a gente resolve isso? Como a gente faz esses alunos se portarem assim?

– Ué, a gente faz um teste bem difícil e aí eles vão entrar na linha…

Respira, respira, respira.

– Mas eles vão entrar na linha por quê?

– Porque aí vão ver que essa matéria é difícil. E aí vão valorizar o que têm e estudar.

– Mas então a gente faz um teste difícil e os alunos ficam dóceis, assim, de uma hora pra outra?

– Você tem o poder, professor, tem a nota. Tem de usar isso para conseguir respeito, né?

– Você tá insistindo com essa coisa de respeito. Mas alguém me desrespeitou hoje? Eu não vi desrespeito nenhum

– Eles estavam conversando, ué.

– Mas sobre o quê eles estavam conversando?

– Ah, eu não ouvi direito…

– Mas então você poderia ter levantado da sua cadeira e ido lá conversar com os alunos e ver sobre o quê eles estavam falando.

– É verdade.

– E vocês estão fugindo da resposta. Propõem que eu faça um teste difícil, mas isso significa que a disciplina tem de vir da punição, do medo deles se ferrarem na prova. Mas isso sim eu considero um desrespeito: fazer um teste que eu tenho consciência que meus alunos não vão conseguir fazer. É um desrespeito meu com o processo deles, com o aprendizado deles e com o tempo deles. E aí o que a gente cria não são alunos disciplinados, mas alunos silenciosos. E alunos silenciosos por medo do próximo teste ser difícil. Alunos inseguros porque não conseguiram ir bem na avaliação, apesar de estudarem, e acreditam que o problema é com eles: que são burros, que não aprendem matemática, que nunca vão aprender, e não comigo, professor, que dei a eles um desafio que eu sei que eles não vão conseguir cumprir. Isso não é exatamente o contrário do que a gente quer?

– Mas eles conversam!

– Conversaram hoje sim, mas sobre o exercício. A atividade que eu propus fazer, eles fizeram. Fui de mesa em mesa tirando dúvidas, eles estavam sentados em grupos. E vi que eles tinham várias dificuldades que eu não sabia, justamente porque a aula expositiva silencia os alunos que não se acham capazes. A minha impressão era de que eles soubessem mais do que eles efetivamente sabem. Portanto, para mim, a aula de hoje foi ótima, porque me permitiu perceber melhor onde nós estamos e planejar os próximos passos. Então, eu não vi indisciplina, vi alguns alunos que perderam um pouco o foco, mas eu fui lá chamar a atenção deles e eles voltaram a fazer a lista tranquilamente. Não precisei me alterar, não precisei deixar ninguém com medo, falei com eles e eles foram fazer o que eu pedi. Pra mim, disciplina é isso…

No trabalho docente a gente sempre parte de onde a gente está com o objetivo de chegar em algum lugar além. A gente caminha, mas não pode ignorar o público, os alunos, suas dificuldades e potencialidades. A gente caminha junto dos alunos. É preciso estar bastante atento a todo o processo, avaliar-se constantemente e, sobretudo, ouvir. Para isso, é preciso que a sala de aula seja um lugar em que se permite a troca constante e o aprendizado. Um lugar acolhedor e de escuta. Claro que a gente tem alguns alunos indisciplinados, mas aí eu novamente pergunto: ele é indisciplinado porquê? O que aconteceu em algum momento da vida escolar desse sujeito para que ele decidisse se rebelar? Qual é a relação dele com a escola? E com os outros alunos? Responder a essa pergunta é complexo e eu tive alguns alunos bem difíceis.

Esse é apenas o primeiro texto de uma série que visa a falar apenas sobre a questão da disciplina na sala de aula de matemática. Vamos falar como trabalhar com alunos indisciplinados, com grupos que prejudicam o ambiente escolar e com turmas inteiras que agem de maneira caótica.

Mas, primeiramente, gostaríamos de criticar o que se espera de uma turma disciplinada. E, para isso, gostaríamos de ouvir nossos leitores.


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Matemática Financeira e Tulipas

Alguma quarta-feira no segundo semestre de 2016

Caos no começo da aula, eles começam a arrastar as cadeiras para se sentar em duplas – na minha escola os alunos não sentam em fileiras, mas em duplas, exceto nas avaliações – e eu vou ligando o projetor multimídia. É um saco, nunca funciona de primeira, ou você reinicia o computador ou reinicia o projetor ou reinicia o computador e o projetor. Um ou outro atrasado aproveita que eu estou distraído para entrar depois que o sinal tocou. Alguém lembra do sacode que o Fluminense tomou na semana anterior. É, parece que eles descobriram, finalmente, pra quem eu torço.

Ok, funcionou. Vamo que vamo

– Quanto vocês acham que é o preço justo para se pagar por um flor?

– Depende da flor, fessô.

– Tá bom, mas é um exercício de pensamento. Quanto vocês acham que vale uma flor bem cara?

– Bem cara? Sei lá, o valor de um Playstation – pausa para risos generalizados. Toda turma tem um gaiato.

– Tá bom, vamos lá, e quanto vocês pagariam por essa flor aqui?

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– Ela é bonita, né? Parece ser rara. Sei lá, uns 200 reais é um preço justo?

– Esse lance de preço justo é complicado, né? Vocês acham que 4 mil reais por um playstation é um valor justo?

– “Claro que não!” “Absurdo!” “Como eu vou jogar a próxima versão do God of War agora?”

Pelo visto eles não se interessaram pela Tulipa, mas perceberam que o assunto é valor.

– Mas essa flor vale mais ou menos que o Playstation?

– Pra mim vale menos, né professor, mas como a gente conhece você, já vem coisa aí.

Risos generalizados.

– Ok, pegou já minha pegadinha. Mas se essa fosse a flor mais cara do mundo inteiro, quanto você daria por ela?

– Mas gente, é um flor! Sei lá, mil reais, mas só se eu pudesse esbanjar dinheiro.

– Que flor é essa?

Olhares interessados, consegui o que eu queria.

– Uai, professor, uma flor vale quanto a gente quiser pagar por ela, né? Valor é uma coisa subjetiva.

Salva de palmas.

– Vou lhes contar uma história que envolve lucro, ganância e especulação. Em um continente muito distante havia um país chamado Holanda. Um belo dia, um botânico chamado Carolus Crusius, após uma viagem à Constantinopla, resolveu plantar tulipas em seu jardim. E nasceram flores belíssimas, como nunca se viu igual naquela terra chamada Holanda. Mas é claro que as coisas não poderiam continuar assim, senão a história não teria graça. Cegos de inveja e pensando em lucro fácil, alguns vizinhos roubaram as flores de Carolus e começaram a vendê-las. Foi um sucesso. Logo logo tava todo mundo plantando e vendendo Tulipa. A Holanda virou a terra das Flores. Mas havia algo de podre na terra da Dinamarca…

– Mas a história não era na Holanda?

– Sim, sim, vocês não pegaram a referência, vão ter de ir mais ao teatro. De todo modo, uma flor não dura mais do que alguns dias. E demora anos para que o bulbo de uma tulipa vire flor. Mas para um bom capitalista, isso não é problema. Inventaram uma coisa que era a seguinte: eu posso prometer comprar uma flor no futuro, dizendo hoje quanto eu vou pagar. Isso chama-se mercado de futuros ou derivativos.

– Hum, mas isso não parece meio bizarro? Você vai pagar por uma coisa que não existe…

– Gente, cês tão de zoeira, né? É uma flor, pô, nem nasceu, nem nada, Vão negociar uma flor que não existe?

– Negociaram. E digo mais, as pessoas passaram a negociar esses contratos. Tipo, eu prometi pagar tanto pela flor no futuro, mas aí eu passo pra você o direito de pagar tanto pela flor mediante dinheiro. Virou um mercado mesmo…

– Tipo a bolsa de valores?

– Não, jovem padawan, a bolsa de valores nasceu ali…

– Comprando e vendendo flores?

– Aham.

– Isso que eu chamo de capitalismo selvagem

– Mas assim, com mais gente querendo comprar as flores e demorando um tempão pras flores brotarem, o que vocês acham que aconteceu com o preço?

– Subiu

– Mas quanto? Qual ordem de grandeza? Meio playstation?

– Fala logo, fessô, deixa de enrolação.

– Teve gente vendendo casas para comprar flores.

Queixos caídos…

– Não, professor, é sério, eu tô indignado. A pessoa abre mão de uma casa, teto, tijolo, parede, porta, janela, quarto, escritório, para comprar uma flor?

– Centenas de pessoas fizeram isso. Por causa dessa florzinha aí. Mas hoje isso não acontece, né? A gente é mais evoluído, aprendeu com os erros do passado…

– Hoje tem economistas pra dizer pra gente onde investir…

= É, por exemplo, tem gente que compra as dívidas de pessoas, tipo, hipotecas, para revender para outras pessoas e ganhar dinheiro com isso. E aí, as pessoas passam décadas pagando a dívida da casa. E o que acontece se ele ficar desempregado?

– Para de pagar.

– E se milhares de pessoas ficarem desempregadas…

– xii…

– O que acontece é que um dia chegou um comprador e se recusou a pagar o valor do contrato pela tulipa. O que aconteceu? Caos generalizado. De uma hora pra outra todo mundo percebeu que aquele negócio tinha deixado de ser lucrativo. A economia holandesa entrou em parafuso. Essa acontecimento ficou conhecido como Mania das Tulipas e foi a primeira bolha especulativa da história.


Toca para falar de juros, sistema financeiro, especulação, mercado de capitais, ações, bolsa de valores, investimento, imposto de renda… Essas aulas introdutórias são um excelente lugar para que os alunos tenham conhecimento sobre as aplicações da matemática em contextos que eles nem imaginam. Economia e investimentos deveriam ser realmente tratados na escola. Eu costumo apresentar essas ideias em dois momentos; logo antes de falar de funções exponenciais e, portanto, sobre juros compostos; e também quando falo de matemática financeira, tratando sobre juros, sistemas de amortização e, consequentemente, sobre o mercado financeiro.

O que mais chama a atenção nessa aula é como os alunos se interessam por essas coisas. Como eles vêem jornal, a linguagem econômica é muito próxima deles, então eles têm muitas dúvidas. É um excelente momento tanto para falar da matemática por trás disso quando de outros fatores, como influências outras – como a moda – na formação dos preços de mercado. É muito fácil que eles tragam exemplos da realidade deles – como o playstation – para entender o quanto essas ideias são intrincadas.

De todo modo, o papo com os alunos é sempre muito legal.


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Até mais!

Eu, professor de Matemática, e a rua

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Praça da Cinelândia, Rio de Janeiro, 15 de março de 2018

No velório hoje na Cinelândia, foi um misto grande de sensações esquisitas. Muitas mulheres, a imensa maioria das pessoas na praça eram mulheres, como a Marielle. E no meio de tantas falas tristes, tanta gente chorando e se consolando mutuamente, eu fico pensando no poder dos símbolos, a capacidade das pessoas de darem um significado simbólico ao que os choca, traumatiza. A Marielle era isso: vereadora, mulher e negra. Esse assassinato cruel deixa um grande vazio e uma grande indignação. Mas também deixa um grande símbolo de resistência e um grande legado.

MARIELLE, PRESENTE!

Ser professor é também emocionar-se, condoer-se. Ser professor é entender que você vive num mundo em que a dor, o luto e a perda são presentes.

Esplanada dos Ministérios, Brasília, 26 de agosto de 1999

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No metrô tem uma energia diferente. Falaram disso a semana inteira, mas eu ainda não estava decidido a participar do ato. Saio da rodoviária do Plano Piloto e como um pastel com caldo de cana da Viçosa, que vai ser meu almoço do dia. A mochila do colégio, o uniforme da escola por baixo da camisa social aberta, decido ir andando para o estágio na Esplanada, quando vejo, pendurada em um guindaste, uma imensa bandeira brasileira. A esplanada estava tomada de vermelho. Gente de todas as cores, do Brasil inteiro, tornando aquela rua monumental e gritando a plenos pulmões. Não fui estagiar, me juntei a eles.

“Fora Já, Fora daqui! O FHC e o FMI!”

Ser professor é trabalhar junto. É unir-se ao coletivo. Ser professor é saber a hora de colocar-se, de tomar uma posição. Não tem professor sem partido.

Praça do Relógio, Taguatinga, data incerta, meio pro fim de 1999

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A gente precisava de sincronia total para dar certo. Os presidentes dos grêmios das três maiores escolas públicas de Taguatinga = EIT, CEAB, e CETN – tinham se reunido secretamente ao longo de toda a semana anterior para planejar os detalhes. E não tinha celular nessa época para sincronizar tudo. Como estávamos mais perto da praça, chegamos primeiro. Camisa branca da escola, camiseta de flanela amarrada na cintura. A polícia começa a chegar. Vai ser tenso, vai ser tenso. Quase ao mesmo tempo, chegam os alunos do CEAB, vindos do sul e do CETN vindos do norte. A ameaça era fechar a minha escola e construir um shopping no lugar. O Governo Roriz não quis nem saber. Ficamos cercados por dois lados da praça. Eu e mais alguns malucos resolvemos fazer um cordão de isolamento, de joelhos. A polícia não negociou. Coloquei o lenço sobre o rosto, já que o embate era inevitável. Eu era basicamente pele, ossos, camiseta de flanela e óculos.

A escola continua de pé.

Ser professor é saber que a escola é o maior patrimônio de um povo.

Centro Comunitário, Universidade de Brasília, Brasília, 04 de Setembro de 2002

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Calouro é foda. Geral falando que o Lula ia estar no Centro Comunitário e eu não fazia ideia de onde era essa bosta de lugar. Depois de um tempo eu me tornaria habituè. Mas estava rolando o debate Brasil em Questão – A Universidade e a Eleição Presidencial que ia receber os candidatos a presidente para que eles apresentassem suas propostas. O Ciro e o Garotinho já tinham ido e agora a atmosfera era muito diferente. Claro que o Serra não foi. Saio da aula e vou seguindo o fluxo. Quando finalmente vejo os bicos da tenda gigantesca onde seria o debate, percebo a imensidão do que estava acontecendo. Gente pra tudo que é lado, tentando entrar para ver o candidato falar. Não consegui, estava muito cheio e quente, no auge da seca. Mas mesmo de longe, percebi que estava perto de algo histórico.

“Sem medo de ser, sem medo de ser, sem medo de ser feliz…”

Ser professor é saber que a política é a capacidade de fazer com que os indivíduos se coletivizem.

Antiga Câmara Legislativa do Distrito Federal, Brasília, 04 de dezembro de 2009

governador ladrão

A ocupação já durava alguns dias. Muitos dos meus amigos tinha estado lá e resolvi dar uma passada. Já tinha ido ao prédio da Câmara legislativa, mas nunca tinha entrado no plenário. Fiquei surpreso. Tudo muito limpo e organizado. Uma escala pra limpeza, outra escala de vigília. Os colchonetes organizados em um canto, outro canto pra comida. Nada depredado, nada pichado, apenas alguns cartazes pregados nas paredes. É impressionante como a imprensa consegue deturpar as coisas, mostrando aquelas pessoas como arruaceiros. Nada disso. Passamos a noite lá. No dia seguinte tinha uma manifestação na frente do Palácio do Buriti e rumamos pra lá logo cedo. Foi bonito de ver, um monte de gente animada pela beleza do que tínhamos vivido nesse movimento contra o governador Arruda. Lembro que as pessoas passavam de carro e buzinavam para nós em apoio. A polícia foi chegando e fazendo o cerco de sempre. Esperávamos que eles nos escoltassem para o trajeto da manifestação. Ledo engano. Do meio da multidão, dois homens – adultos, 1,80, cabelo curto e sem barba – começam a gritar “a gente quer chamar a atenção ou não quer?” “Quando é que vai começar o quebra-quebra?” “Que movimento é esse que nem põe fogo num ônibus”. Um senhor já com seus 50 e tantos anos encara os dois com sangue dos olhos e diz: “Sai daqui P2 filho da puta”. Eu já tinha ouvido falar disso, mas achei que era lenda. Os agentes do serviço reservado da polícia não tinham nada melhor pra fazer? Os dois ficaram brancos. Um deles fez um sinal com o braço. Não deu tempo de fazer muita coisa, a cavalaria veio pra cima da gente no meio do gramado. Sacanagem, a gente tinha combinado com o comandante da polícia que se ficasse no gramado não ia rolar treta. O senhor coroa que denunciou os P2 tropeçou na frente da cavalaria, caindo no asfalto. A filha dele estava do meu lado. Eu estava a menos de 10 metros dele, mas foi tudo muito rápido. Ele foi pisoteado pelos cavalos e espancado. Um garoto que eu tinha visto na ocupação no dia anterior foi um gigante. Enfrentou os cavalos com o corpo pra puxar o coroa de lá. Perdemos a Batalha do Buriti, mas não perdemos a guerra. O Governador foi preso e chegou a governar Brasília de dentro do presídio. Renunciou dias depois.

“O Arruda vai ganhar uma passagem pra sair desse lugar. Não é de carro, de trem ou de avião. É algemado no camburão…”

Ser professor é ter coragem e admirar o valor da coragem.

Ser professor também é desconfiar e agir. 

Avenida Presidente Vargas, Rio de Janeiro, 20 de junho de 2013

ATO_RIO

Marquei com a Bruna pelo Whatsapp na estação Uruguaiana, lá embaixo mesmo. Estação fechada, saí pela Carioca e liguei para ela. Nos encontramos pouco depois. Fomos em direção à Presidente Vargas. Parecia o Cordão do Bola Preta. Empresas fecharam, escolas liberaram os alunos mais cedo, sabíamos que ia ser gigante. Há semanas estávamos já participando dos protestos no centro que aconteciam quase diariamente, com confrontos entre a polícia e manifestantes. Foi difícil até entrar na avenida para seguir a marcha. Gente, gente, gente, dos dois lados da rua, ocupando todas as faixas e marchando em direção à prefeitura. Nenhuma bandeira de nenhum partido. A cidade pulsava, nossos gritos ecoavam nos edifícios da Presidente Vargas e ali, no meio da rua, era impossível estimar o tamanho daquilo. Passamos por baixo do viaduto que sai do Santa Bárbara e lá em cima vimos um monte de gente olhando para a multidão, totalmente embasbacados. Segue a manifestação, uma certa alegria pueril, uma esperança de que agora as coisas iam ser diferentes. Passamos pelo estandarte da escola em que trabalho e os alunos do grêmio estavam todos ali sorridentes. Chegamos ao prédio dos correios e a Bruna me puxa pelo braço. Uma miríade de homens adultos, com roupas militares, paus e outras armas brancas passa pela gente como um batalhão. Paramos. Vai dar merda, vai dar merda, vai dar merda. “Vamos voltar?” Primeira bomba. “Covardes”. De uma hora pra outra parece um bombardeio: dezenas de bombas de efeito moral. Hora do vinagre, a Bruna e eu corremos. Barulho de carros de polícia, pessoas gritando. Passamos por alguém quebrando um ponto de ônibus. Era um rapaz alto, pelo menos 1,85, musculoso e com cabelo curto ao estilo militar. Não se preocupa em esconder o rosto, nem sequer a faixa preta amarrada no pulso direito. Passa um policial por ele e um sorri pro outro. Filhos da puta. A Presidente Vargas é uma nuvem de gás de pimenta. Meu sangue ferve, mas a Bruna me acalma. Preocupado com os alunos no meio dessa covardia toda. Desviamos para a Lapa, esperando sair do meio da confusão. Ouvimos gritos e bombas de tudo que é lado. O celular não funciona. Seguimos. Passamos pela delegacia de polícia civil (acho que era a Core). Eles estão indignados porque as suas armas foram retiradas antes da manifestação. Seguimos correndo. Achei que seria bom esperar na Lapa. Mais bombas. Blecaute no centro. “Vamos andando, vamos andando”. Ainda sem sinal de celular, sem ideia do que está acontecendo. Vamos pra Glória. Deixo ela no Largo do Machado e sigo para casa. Quando saio do túnel do metrô, meu celular trava com a quantidade de notificações. Reinicio. Meus alunos estavam presos dentro do IFCS, sem luz, esperando a confusão passar. Aquilo que começou tão bonito virou um pesadelo.

Mas o que mais me chamou atenção foi outra mensagem, essa mais pessoal e mais doída. De dentro do metrô, voltando pra casa, o diálogo com a Bruna foi rápido e direto.

– Você já soube da notícia?

– As depredações no centro? Eu tô vendo no Jornal agora…

– Não não, a outra bomba do dia de hoje.

– Qual?

– Maria Laura morreu.

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“Não acabou, tem que acabar! Eu quero o fim da Polícia Militar”

Maria Laura era uma presença frequente no instituto de Matemática da UFRJ. Lembro da primeira vez que a vi, já com seus 90 anos, firme, forte e lúcida, ainda trabalhando, com um sorriso e generosidade cativantes. Primeira doutora em matemática do Brasil, sua história está diretamente ligada do desenvolvimento da Matemática e da Física brasileiras. Trabalhou pela criação do IMPA, do CBPF e do CNPq, além da Sociedade Brasileira de Educação Matemática. Além disso, teve uma destacada atuação política, sendo exilada pela ditadura de 1969 a 1979. Em seus últimos anos de vida, dedicou-se á educação matemática, plantando as sementes para que ela se desenvolvesse.

O dia que ela morreu, o mesmo dia daquela manifestação que eu narrei ali em cima foi muito simbólico para mim. Acabar aquele dia fatídico com essa notícia me trouxe um imenso vazio.


Essa é uma história sobre mulheres e suas lutas, mas é também uma mensagem sobre o poder dos símbolos. De alguma maneira, as pessoas que passam pela nossa vida vivem em nós, nos deixando um pedaço delas. E o nosso poder de torná-las eternas é continuar o seu trabalho, diariamente.


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Até mais!

 

A subversão do porta-voz autorizado (legítimo e mandatário do Estado)

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Autor: Fábio Lennon Marchon

Dia desses, na sala de aula em uma turma regular de nono em uma escola pública da Prefeitura Municipal de Niterói, revisava os cálculos com potências, enunciava e exemplificava as regras de cálculo. As dificuldades remontam os conceitos elementares. E, mesmo tendo falado a respeito, na primeira atividade proposta as dúvidas emergem e denunciam os pontos sensíveis na formação matemática destes jovens.

– Professor…então dois elevado a três é seis…certo?

– Não! De acordo com o que vimos até este momento isto não está certo. Esta seria a resposta para outro tipo de regra, outro jogo, outro raciocínio!

– Não entendi! Não entendi nada!

Falei para a turma que um jogador de futebol, no Brasil, utiliza os pés; as mãos apenas em casos especiais, por exemplo, em um lateral. No rugby, por outro lado, os jogadores correm pelo campo e, nas mãos, carregam a bola que está em jogo. Assim, tentei mostrar que para jogos diferentes existem regras diferentes. Disse que certo e errado dependerá da regra do jogo. Além disso, afirmei que as regras são convenções criadas pelos homens… criadas por algum motivo. As regras e o seu uso têm uma história. Após este papo, continuei falando:

– pense em duas coisas bem distintas: uma soma com parcelas iguais e uma multiplicação com fatores iguais, por exemplo, “dois mais dois mais dois” e “dois vezes dois vezes dois”. Qual deles diz respeito à sua questão?

– hummmm… sei lá! Respondeu  o aluno.

– Tudo bem, sem problemas. Então façamos os cálculos. Qual será o resultado da primeira operação que falei?

– seis!

– certo! Escrevemos “2+2+2 = 6”, não é?!

– Sim!

– ótimo! Viu?! Você sabe algo importante! Agora diga-me, quantas vezes o número dois aparece nesta conta? Nesta adição?

– três vezes.

– Então poderia dizer que isso é três vezes dois?

– Sim!

– Ahhh… então eu posso escrever “3×2=2+2+2”?!

– Sim!

– É este o cálculo que você perguntou lá no início?

– Não!

– Então, pense um pouco na segunda operação que eu falei contigo!

– Mas professor… ainda não entendi! Me fala a resposta fessor! E agora? Quanto é “23”?

– Jamais te falarei a resposta pronta…não assim como quer! Pense! Você é capaz de chegar à conclusão! Eu tenho fé em você!

– Eu mesmo não tenho fé em mim!

***

Se alguns dos estudantes com 13 ou 14 anos, no nono ano de escolaridade, não conseguem perceber a distinção entre somas e produtos… e isto pode ser ampliado para estudantes do ensino médio espalhados pelas escolas públicas do Brasil… esta poderia ser uma dificuldade em nível semiótico ou, ainda, epistemológico ou, além disso, sociocultural? Seria uma dificuldade multidimensional: semiótica, epistemológica e sociocultural? Afinal, somos seres sociais que estamos amalgamados em uma totalidade (histórica, social, cultural) e vivemos em uma multiplicidade de mundos e realidades… nossas experiências e vivências, nossa aprendizagem, não se dá em partes isoladas.

No entanto, deve-se destacar a prevalência do poder simbólico associado ao discurso legitimado do professor, detentor de um saber reconhecido socialmente (títulos, diplomas, etc.), e autorizado pelo Estado a dizer aos estudantes “verdade” das coisas. Um “falar” que é localizado, posto que é disciplinar. Enunciador de um “saber” específico, posto que é, em geral, isolado de outros saberes e possui suas regras próprias. 

***

Fragmento para reflexão 1.

Na luta simbólica pela produção do senso comum ou, mais precisamente, pelo monopólio da nomeação legítima como imposição oficial – isto é, explícita e pública – da visão legítima do mundo social, os agentes investem o capital simbólico que adquiriram nas lutas anteriores e sobretudo todo o poder que detêm sobre as taxionomias instituídas, como os títulos. Assim, todas as estratégias simbólicas por meio das quais os agentes procuram impor a sua visão das divisões do mundo social e da sua posição nesse mundo podem situar-se entre dois extremos: o insulto, idios logos pelo qual um simples particular tenta impor o seu ponto de vista correndo o risco da reciprocidade; a nomeação oficial, acto de imposição simbólica que tem a seu favor toda a força do colectivo, do consenso, do senso comum, porque ela é operada por um mandatário do Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legítima. (BOURDIEU, 2011, p.146).

Na sala de aula somos o porta-voz de um saber, ou, o que prefiro, de um conhecimento sistematizado, hierarquicamente construído e artificialmente organizado pelos programas e currículos.

Somos, todos nós professores de matemática, detentores do discurso matemático que é legítimo e válido no espaço escolar. Somos aqueles que os alunos, muitos deles, assumem como os grandes resolvedores de problemas e detentores de respostas, ou seja, guardamos em nossas mentes os segredos que lhes escapam e, na verdade, todas as respostas.

Exageros à parte, essa herança escolar, essa tradição da escrita e da cópia do que está no quadro, a imposição de que eles devem escrever tudo, anotar cada palavra, isso vem se convertendo em um novo desafio….não tão novo assim…vejam-se as inquietações platônicas com relação à escrita em Fedro….

É que a escrita, Fedro, é muito perigosa e, nesse ponto, parecidíssima com a pintura, pois esta, em verdade, apresenta seus produtos como vivos; mas, se alguém lhe formula perguntas, cala-se cheia de dignidade. O mesmo passa com os escritos. És inclinado a pensar que conversas com seres inteligentes; mas se, com o teu desejo de aprender, os interpelares acerca do que eles mesmos dizem, só respondem de um único modo e sempre a mesma coisa. Uma vez definitivamente fixados na escrita, rolam daqui dali os discursos, sem a menor discriminação, tanto por entre os conhecedores da matéria como os que nada têm que ver com o assunto de que tratam, sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não. E no caso de serem agredidos ou menoscabados injustamente, nunca prescindirão da ajuda paterna, pois por si mesmos são tão incapazes de se defenderem como de socorrer alguém. (PLATÃO, 261a-b).

Alguns dizem “mas professor, eu anotei tudo! Pode ver!” e eu, rebato, “certo, mas e pensar sobre o que está anotado? Pensou?”; e acrescento “Vamos refletir sobre o que foi escrito? Vamos estudar isso?”. A oralidade, a reflexão e o pensamento, quando diante da escrita oficial e do discurso legitimado do professor parecem intimidar-se em sala de aula. Para que pensar se isso já foi pensado? Nesse ponto, é exatamente a exigência da prática por parte do aluno que o conhecimento assume alguma relevância. A contradição surge do impasse nascido da crença de que o detentor do saber oficial é o professor e, ainda, que o erro é algo condenável. Ilusões. Todos possuem seus conhecimentos, todos sabem algo, todos podem ser, e de fato são, seus próprios porta-vozes. Cada um têm a capacidade de falar o que sabe, mesmo que o seu conhecimento seja conflitante com a do professor. Apenas regras diferentes. Todos podem argumentar em favor das suas ideias, e deduzir resultados. O mais usual entre os estudantes nesta fase é a exemplificação para expor seus saberes, sejam quais forem.

***

Fragmento para reflexão 2.

No interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber. O exterior de uma ciência é mais e menos povoado do que se crê: certamente, há a experiência imediata, os temas imaginários que carregam e reconduzem sem cessar crenças sem memória; mas, talvez, não haja erros em sentido estrito, porque o erro só pode surgir e ser decidido no interior de uma prática definida; em contrapartida, rondam monstros cuja forma muda com a história do saber. Em resumo, uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, “no verdadeiro”. (FOUCAULT, 2011,p. 33-34).

***

– Mas, professor, e se eu errar?

– Que problema há? Todos erram! Eu erro o tempo todo! Quantos erros até chegar a um acerto! Aprendemos com os erros!

– Mas eu tenho medo! Medo de errar!

– Mas tanto o erro quanto o acerto dependem da perspectiva diante do que foi feito! Depende de como você vê o problema! Depende da regra do seu jogo! Talvez você tenha feito um grande acerto em outro jogo!

– Mas o seu jogo é diferente! Preciso acertar no seu jogo!

– O jogo não é meu! Estamos em um jogo, sim, mas não criamos estas regras. Contudo, se queremos avançar… temos que conhecer os caminhos e saber usar o que outros já indicaram… o que não quer dizer que você não possa criar seus caminhos por conta própria!

– Ahhh…. professor! Assim você me confunde! Me dá a resposta!

– Nunquinha! Jamais! Vamos pensar juntos, é melhor!

***

O medo se eleva como categoria relevante de análise. Talvez, além dele, devam-se incluir o controle de si mesmo em relação ao parâmetro de comparação e exigência que vem do olhar critico do outro (distinto de “eu”). Avançamos para além dos limites da consciência e da razão. O espaço a ser desvendado é a do inconsciente. No nível consciente pode-se tentar alcançar os traumas via lembranças, recordações, rememorações. No entanto, nem todo trauma é essencialmente negatividade. Existe positividade e transformação no trauma.

O médico é sempre e exclusivamente um desses “espectros” (Freud) que fazem ressuscitar no paciente as figuras desaparecidas de sua infância. Em contrapartida, uma única palavra um pouco menos amistosa, um comentário a propósito da pontualidade ou de qualquer outra obrigação do paciente basta para desencadear toda a raiva, o ódio, a oposição, a cólera recalcados, outrora alimentado a respeito das pessoas onipotentes que lhe impunham o respeito, pregavam a moral, ou seja, os pais, os adultos da família, os educadores. Reconhecer a transferência das emoções positivas e negativas é capital na análise. (FERENCZI, 2011b, p. 91).

 Cena: O caderno rasgado.

Em 1985, por volta das 19 horas, em uma casa como muitas outras, vê-se a mãe na cozinha, tentando terminar o preparo do jantar. Seus dois filhos estão à sua volta, próximos, gravitando ao seu redor. O pai chega exausto do trabalho. Solicitado pela mãe, o pai se compromete a ajudar o filho com a tarefa de casa. Diante deles um caderno, ainda novo, com alguns exercícios de matemática. O pai rapidamente reconhece  que o exercício se concentra nas “regras de sinais”;  “menos com menos” e “mais com mais”. A explicação começa de modo inusitado, estranho: “amigo do meu amigo é meu amigo” afirma o pai. Ele  prossegue, “inimigo do meu amigo é meu inimigo”. Assim, a “regra de sinais” para os números inteiros que diz que “(+).(+) = (+)” e que “(-).(+) = (-)” assume nova aparência. O “amigo” é “+” e o inimigo “-”. O pai, esgotando suas metáforas, escapando-lhe as analogias, findando seu repertório, irrita-se com a incompreensão de seu filho. O adulto, em um ímpeto de fúria, rasga o caderno do menino ao meio e quebra-lhe a lapiseira. O garoto observa a lapiseira partida ao chão. Objeto com uma simbólica própria no imaginário deste menino. Dias antes o pai havia presenteado o garoto com essa lapiseira, objeto que ele, o pai, utilizava em seu serviço; “a melhor que existe”, dizia o pai naquela ocasião. Agora, quebrada, partida diante dos olhos do menino, representava sua ignorância e incompetência. O garoto, atordoado, mudo, chora silenciosamente. “Ele tem que estudar mais! Tem que aprender a estudar! Vai passar tudo a limpo e estudar!”, grita o pai!

A cena narrada retrata uma experiência pessoal. Eu sou este menino. O rasgo na alma que emerge da colisão com a imagem do herói caído, aquele que se converte em vilão, fez emergir uma vontade incessante de ir além dos meus limites e provar minha capacidade. Houve, no fim, positividade.

***

Um ensino de matemática mais sensível e humano exige um olhar quase psicanalítico para nossos jovens. Amontoar crianças em uma sala, abarrotar os espaços, e tratar os jovens como pessoas que devem ser cercadas e controladas em um determinado espaço-tempo não é necessariamente algo que eu concorde. Depósitos de almas. Se existe uma demanda social pela massificação da educação, esta não tem sido acompanhada pela valorização dos seres humanos que chegam à escola. Traumas e medos. Violência simbólica e imposição de verdades. Respostas prontas, cópias e anotações sem significado.

O véu de ilusão ainda não foi rasgado! É importante subverter o discurso do porta-voz oficial do Estado no espaço escolar: o professor.


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Até mais!


Bibliografia Citada

Bourdieu, Pierre. O Poder do Simbólico. Tradução Fernando Tomaz (português de Portugal). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

FERENCZI, Sándor. “Transferência e introjeção” in Psicanálise I. SP: Martins Fontes, 2011b.

Foucault, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 2011.

PLATÃO. Fedro. In: Diálogos. Vol. V. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 1975.

Fragmentos reflexivos do diário de um professor de Matemática

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Autor: Fábio Lennon Marchon

Cena 1.

Parado sob o vento quente de um ventilador de teto, no interior da sala dos professores, eu espero pelo fim do intervalo. A sala que mais parece um forno, com um ar condicionado que não funciona faz bastante tempo, e com apenas um ventilador de teto que nada refresca, aquece ainda mais os nossos dias. É dentro desta composição hitleriana que, como presas, recarregamos nossas parcas energias após as primeiras aulas.

Um som alto, agudo, estridente anuncia o momento do retorno à sala de aula. Enquanto pego meu material para retornar ao trabalho observo os demais professores. Olhares perdidos, vozes silenciadas e pensamentos distantes. Engana-se, contudo, quem acredita ser alguma falta de disposição para o trabalho. Instantes antes, falávamos do assassinato da vereadora Marielle, a morte de inocentes no dia a dia… crianças assassinadas… falávamos sobre a corrupção dos policiais e dos políticos, a ineficiência do poder judiciário, as verbas mal utilizadas e que quase nunca chegam às escolas públicas. As incongruências da vida, as contradições do ser do homem e as supostas certezas implicadas no saber-fazer pedagógico dos diferentes professores colidiam em um mar de incertezas e dilemas morais e éticos.

Antes de sair da sala quente parei uns míseros instantes na porta. Apenas falei em voz alta, nada de ordens ou gritos de guerra, apenas falei comigo mesmo: Vamos lá! Força!

***

Raymond Willians, ao escrever sobre A Produção Social da Escrita, aborda o tema do drama em uma sociedade dramatizada. Uma de suas primeiras inquietações é a seguinte:

O que devemos nos perguntar é o que, em nós e em nossos contemporâneos, atrai-nos repetidamente para essas milhares de ações simuladas, para essas peças, essas representações, essas dramatizações (WILLIANS, 2014, p.15).

Não pretendo seguir esse caminho, mas, no entanto, esta inquietação enunciada me fez pensar nas relações dramatizadas, teatrais, em que eu me coloco em sala de aula, diante dos estudantes, ao tentar explorar o conteúdo matemático a ser ensinado. A teatralização da representação dos fatos, ou seja, a ficcionalização da História, tem sido um dos meus instrumentos pedagógicos (não enunciados). Minha prática pedagógica, minha ação em sala de aula é constantemente teatral. Não sou eu, Fabio Lennon Marchon, quem ali se apresenta. Um “outro eu” se coloca diante das turmas, perante o auditório, e se dirige aos estudantes.

Em geral não falo sobre isso e, a bem verdade, vejo poucos amigos assumindo publicamente tal coisa. Quando muito, e isto de modo um tanto desconfortável, concordam com a dramatização da prática pedagógica e a assumem implicitamente como algo natural e que pouco há o que se falar – “é assim mesmo”, dizem os mais acomodados intelectualmente.

Certa vez ouvi o testemunho de amigos que trabalhavam em cursos preparatórios e, estes, por sua vez, assumiam que vestiam as máscaras dramáticas que melhor lhes convinha para convencer e persuadir o seu auditório de que o que diziam era necessariamente a verdade das coisas (e as coisas necessárias da verdade). A matemática apresentada como objetiva, certa, segura, com suas regras e linguagem, emergia do drama e, a cada encenação, uma perspectiva não-neutra e ideológica carregada de valores sobre a Matemática e o seu ensino se amalgamavam às experiências daqueles alunos.

Hipótese: O drama tem esse poder de dizer algo e convencer alguém sem, de fato, enunciar o que é dito. A representação, a teatralização, reproduz crenças, valores e verdades que, desprovidas de reflexão, convertem-se em ilusões que perduram no imaginário coletivo (social) em determinado contexto sociohistórico.

No espaço escolar ocorre um encobrimento, apagamento, diria mesmo esquecimento destas condutas. Assumir que se dramatiza o ensino se mostra como algo raro, pelo menos em meu universo de convívio, entre os professores de matemática. Alguns dizem que a verdadeira matemática – se é que existe alguma que seja falsa –  não necessita de teatro, poesia, ficção ou qualquer forma de expressão além da própria racionalidade e linguagem matemática; ou seja, para estes, desumanizar a matemática é tão necessariamente verdadeiro quanto a própria existência de uma matemática verdadeira e de outras falsas. Sabendo-se ensinar os conceitos matemáticos – sabe-se lá como isso é feito Brasil afora – o estudante aprenderá. Representações gráficas, números, esquemas, tabelas, e o bom matematiquês marcam seu território de poder em que nenhum outro saber disciplinar deve se mostrar.

***

Cena 2.

Fui o primeiro a chegar à sala de aula.

Acredito que para os alunos esta simples atitude é muito significativa.

Parado na entrada da sala de aula, ao lado da porta, recebo um por um… até certo momento… pois o tempo de aula não é tão flexível quanto eu gostaria que fosse. Após uma pequena tolerância em que eu espero os atrasados, inicio meu trabalho.

Sentam-se animados, ainda eufóricos após o intervalo. As conversas tratam de muitos assuntos, nenhum deles relacionado ao conteúdo trabalhado, à disciplina (matemática) ou sobre qualquer outro aspecto referente à escola. Eu para diante da turma. Olho para seus rostos. Meus olhos agem como uma mira! Atravesso seus olhos com meu olhar. Percorro toda a sala. Olho um a um. Meus lábios cerram e as sobrancelhas curvam-se – A teatralização tem seu começo – Alguns percebem a mudança no olhar e na postura e ajeitam-se em suas cadeiras. Outros abaixam a cabeça e fingem dormir. Neste momento uma estudante que havia ultrapassado os limites do tempo de tolerância para o atraso tenta entrar em sala. Eu interrompo minha fala… que nem mesmo se iniciou… e digo:

– Infelizmente vivemos em uma sociedade regrada. Estar em sala de aula no horário da aula é algo que faz parte… desça e espere a próxima aula.

Esta atitude me corrói a alma! Pensei comigo mesmo “que se dane o horário… que ela entre e participe!”. No entanto, no fim, seguir as regras e dar o exemplo para todos os outros me pareceu mais acertado. Não posso simplesmente esquecer que as regras existem. É uma das contradições que enfrento, pois, afinal, apenas superando certas regras e normas pode-se reinventar essa sociedade caótica e perdida. É necessário ser livre… ir e vir… mas não é esse nosso modelo escolar. Além disso, o tempo escolar é uma belíssima ficção e, simultaneamente, um terrível pesadelo para o livre pensar e para os jovens corpos que se sentem aprisionados!

Começo a falar, o tom de voz se eleva nos quatro cantos da sala. Os braços gesticulam e se elevam sobre minha cabeça. A mão aberta como um aceno se fecha, os dedos esmagam a mão, a imagem é certamente icônica… uma caricatura. Palavras acompanham os gestos:

– Vejam do que se trata o problema que enfrentamos aqui: PODER!

Aponto para o quadro.

No tempo de aula anterior, antes do intervalo, o professor de Geografia João escreveu algo sobre a disputa pelo poder entre as superpotências…o quadro denunciava a essência da aula. Disputa econômica. Corrida armamentista. Conflitos e guerras.

Aproveitei os acontecimentos recentes, e a percepção de que alguns deles estavam sentindo-se vencidos pela matemática, para mudar o rumo da aula. O desânimo aparente dos alunos motivou uma mudança estratégica em meu discurso e em minha atuação.

***

Creio que aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não linguística. Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem “sentido”, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas. (Foucault, 2015, p.41)

***

Cena 3.

A professora de português da turma me encontra na sala dos professores e pergunta o que fiz com eles? O que fiz? E ela complementa:

– Você está formando ninjas? Treinando ninjas?

Apenas para esclarecer o leitor, costumo falar alguns slogans com meus alunos. Coisas como: “força, coragem e determinação!”. Além disso, criei uma categoria de herói fictício e genérico a qual eles pertencem pelo simples fato de estarem na aula de matemática. Chamo-os de ninjas Jedis. Referência aos filmes que tratam dos grandes guerreiros do oriente, os ninjas, da qual muitos dos jovens conhecem apenas as caricaturas dos enlatados norte americanos e a série hollywoodiana Star Wars. Pois bem, feito este breve esclarecimento, cabe ainda pontuar que afirmo, recorrentemente, que aprender matemática os deixará como ninjas da matemática! A verdade ou a falsidade da afirmação não me importam. A ficção que crio, no sentido de motivá-los, isto sim, merece algum debate. Esta estratégia pode ser controversa, mas, em fim, tem funcionado.

Retornando ao acontecimento que chamou a atenção da professora de português, a Girlane, devo dizer que nada em especial foi feito.

Propus uma atividade, chamei-a de teste… mas… na verdade, um trabalho com consulta ao material, uns falando com os outros… algo muito livre, porém, ainda assim, regrado. Questões com um nível de dificuldade médio para o grupo. Nada novo. Nada que se possa dizer que ultrapassa o que se fez em aula. Contudo, atividades que exigem algumas habilidades específicas e conhecimentos bem localizados.

Os estudantes após meu discurso sobre as relações de poder… e sobre o poder em saber matemática e português (no caso do Brasil)… simplesmente se recusavam a desistir! Não queriam abandonar as questões! E, na aula da professora Girlane, se mostraram empenhados em também se superarem na língua portuguesa.

Alguém pode dizer que não é nada especial isso. É, de fato, algo simplório. No entanto, por outro lado, ao lidar com um grupo de alunos que foram retidos, que estão acima da idade para o ano de escolaridade, que ouvem recorrentemente que são incapazes e ruins para certas atividades, que são os desajustados da sociedade… que vivem em condições socioeconômicas esmagadoramente ruins… e convivem com toda a violência que para muitos dos professores é apenas reportagem de telejornal… o fato de um  professor os considerar heróis, de mostrar atenção e dedicação, de os receber na porta, de olhar em seus olhos e falar abertamente sobre  o poder (invisível) do qual abrem mão ao desistir do conhecimento… isso faz muita diferença.

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Da ignorância da inexperiência

CENTRO DO RIO, SOL, CALOR, BARULHO, HOJE.

Morar em uma cidade antiga tem essa coisa de fazer a gente sonhar um pouco com o passado, com aquelas ruas cobertas de carruagens e gente de tudo que é tipo andando pra um lado e para o outro e o mar muito mais perto, antes da derrubada do morro do Castelo. Toca pro CCBB e tem uma instalação incrível pro Grande Sertão Veredas e eu fico lá de boa sentado esperando o meu amigo Fábio chegar. Pausa para reminiscências.

ESSES DIAS, NO GRUPO DO WHATSAPP DOS PROFESSORES DE MATEMÁTICA DA MINHA ESCOLA, ALGUÉM POSTOU UMA REPORTAGEM – QUE EU ME RESERVO O DIREITO DE NÃO CITAR – TENDENCIOSA E EQUIVOCADA DIZENDO QUE SÓ SÃO PROFESSORES DE MATEMÁTICA OS QUE NÃO CONSEGUIRAM SER OUTRA COISA. E ISSO ME FAZ PENSAR QUE TIPO DE PROFESSOR EU SOU, QUE TIPO DE PESSOA EU ME CONSTITUÍ. EM OUTRAS PALAVRAS, QUE HISTÓRIA EU CONTEI PRA MIM MESMO?

Toca pra hoje, CCBB, Grande Sertão Veredas, soldados cinza de pano pendurados, gente ouvindo o silêncio em seus fones de ouvido. Ar condicionado, abóbada, compasso de espera, whatsapp, Fábio chega esbaforido, vindo das barcas.

Volta pra 2011, meu primeiro ano como professor. Volta para relembrar o quanto eu errei e o quanto cada erro foi necessário para que eu me constituísse como eu, em oposição ao meu projeto de eu. Meu eu real vs. meu eu projetado. Meus eus em processo de serem várias partes de mim, envolto em várias partes de tudo o que me cerca.

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É preciso que eu me encare. É preciso que eu me historicise. É preciso que eu perceba que tipo de professor eu escolhi ser, para que, com isso, eu desempenhe melhor o meu papel. Afinal de contas, porquê eu escolhi a docência? Eu que trabalho com estagiários – que em algum momento poderão vir a ser professores – tenho certeza de que tipo de professor eu sou?

Subimos ao primeiro andar. Exposição Ex Africa. Depois para a Colombo. O Fábio é dessas pessoas que transborda ideias profundas. Nossa longa conversa é entremeada de silêncios. Uma boa conversa tem escutas ainda que nada tenha que ser dito. Porque uma conversa boa continua dentro da gente matutando na cabeça os significados das palavras. Fábio é, antes de tudo, um forte e eu não percebia então que era sobre isso que seria a nossa conversa. As conversas com o Fábio caminham sozinhas; as conversas com Fábio não seguem temas; as conversas com Fábio têm vida própria.

Volta pra 2011. Na primeira semana de aula eu expulsei cinco alunos de sala. Cinco alunos em oito aulas.

FÁBIO – Veja você, quando Foucault escreve A História da Loucura e ele fala dos leprosários, qual é a grande sacada? Primeiro, os leprosos ficam isolados do convívio social. Aí o Estado faz o quê? Cria os leprosários para que os doentes tenham que se submeter a um local e às regras que são definidas por ele. As instituições servem para controlar essas pessoas e fazer o que quiser com elas. São pessoas invisíveis. E o que a gente faz na escola? A gente expulsa de sala aquele aluno que não se submete, tira do convívio, vai para outro lugar. Mas o que acontece? O aluno volta, porque é nossa obrigação – enquanto Estado – fazer com que ele esteja ali, naquele lugar, mesmo que seja contra a sua vontade.

Porquê esses alunos foram expulsos? Porque não se submeteram à minha autoridade. Porque conversavam enquanto eu falava. Porque me interromperam. Porque eu não fui com a cara deles. Porque eu podia. Mas, principalmente, porque eu não sabia lidar com a minha incapacidade de controlá-los. Eu achava que minha autoridade de professor seria o bastante para ser ouvido, que minha voz seria mais alta do que a de 30 pessoas, que eles me respeitariam porque era a obrigação deles me respeitar. Porque eu não poderia admitir que depois de anos e anos de estudos, eu não tinha a menor ideia de como fazer com que eles aprendessem.

FÁBIO – Outra coisa, quando você se sente acuado, o que você faz?

EU – É instintivo, bater ou correr.

FÁBIO – Na sala de aula é a mesma coisa. Existem aqueles que esperneiam, que reclamam, que fazem bagunça. São os indisciplinados e esses são os que sofrem os rigores da estrutura: advertência, suspensão, expulsão. Mas a gente esquece dos outros. Os que, sentindo-se incapazes de aprender matemática, fogem. Não acreditam em si mesmos, em sua capacidade de aprender e naturalizam a própria ignorância. Todos os dois são vítimas de uma escola que acua, que não parte da lógica de acolhimento, de escuta. Sendo assim, eles fazem o quê? O que o instinto manda.

EU – Mas como chegamos aqui? Nós dois só estamos aqui porque nos submetemos a essa estrutura, é isso? Agora me senti um covarde rsrsrs.

FÁBIO – Não só isso. Nós estamos aqui porque nós conseguimos estar. Foi o caminho que seguimos. Estamos porque a vida nos trouxe.

EU – Eu fico pensando nessa linguagem violenta que os meninos usam. Aqui no Rio isso é muito comum, essa agressividade…

FÁBIO – Sim, são agressivos até com quem eles têm carinho.

EU – Mas porque isso? Você tem alguma hipótese

FÁBIO – Ora, veja de onde eles vêm. Está em jogo a própria sobrevivência deles. É preciso que eles sejam fortes e submissos. E inteligência pode ser uma coisa muito perigosa.

EU – Mas um garoto inteligente pode deixar de ser um soldado e se tornar um coronel.

FÁBIO – E o coronel que já está lá vai querer dividir o poder com outro coronel?

Silêncio para deglutição dos pensamentos.

Volta pra 2011. A diretora me chama na sala dela. Me fala durante alguns minutos que não adianta nada mandar os alunos pra direção, que é o professor dentro da sala de aula quem deve conseguir mediar os conflitos. Que muitas vezes eu faço o que os alunos querem mandando eles para fora. Eles subvertem minha subversão. Me sinto perdido e exausto. 

Primeiro teste. Notas horríveis. Sinal vermelho. Priscila, com toda calma do mundo me explica onde foi que eu errei. FOCO NO EU ERREI. Não sabia nem mesmo como se corrigia os testes. Não sabia dimensionar a quantidade de questões, muito menos a dificuldade. Eu estava me sentindo fracassado. Quase desisti. Priscila não deixou. 

EU – Mas eu sempre pensei que o conhecimento ia libertar esses meninos. Que era o nosso papel dar consciência a eles.

FÁBIO – E o que eles vão fazer com essa tal “consciência”? E você acha mesmo que a gente dá alguma consciência a alguém? Acha mesmo que a tomada de consciência se dá na escola? Não, eles são sobreviventes, eles usam estratégias de sobrevivência o tempo todo. A linguagem deles é um reflexo disso, de alguém que está o tempo todo com a vida no limite. No fim das contas são eles, os nossos alunos, que têm consciência. Nós é que vivemos em nossas bolhas.

EU – E o que fazer então?

FÁBIO – Ganhá-los, conquistá-los. Mostrar onde é que o conhecimento matemático está na vida deles. Por exemplo, eu fui falar de teorema de Pitágoras com o nono ano. Falei sobre as áreas dos quadrados nos lados do triângulo retângulo e vi que ninguém prestava atenção. Não tocou ninguém. Eu percebi que precisava usar outra linguagem, precisava contar outra história para que os alunos entendessem o sentido disso. Aí eu usei o conhecimento que eu tenho, de quando estudei direito. Falei da lei de Talião, código de Hamurábi, olho por olho, dente por dente. E que se um arquiteto ou engenheiro construía uma casa e depois ela caía e matava uma família, ele sabia que ele e toda sua família iam ser colocados em uma casa e iam ser demolidos, para morrer. Então não tinha essa de não achar um ângulo reto, era questão de vida ou morte…

EU – E funcionou.

FÁBIO – Sim, os alunos enxergaram ali uma história parecida com a deles.

EU – Uma história forte para alunos fortes.

E quem me salvou? Quem me fez voltar a querer ser professor? Os alunos. Na história anterior eu falei sobre como o teatro me ajudou no meu primeiro dia de aula. Mas isso não se sustenta no longo prazo, justamente porque o trabalho do professor não é atuação. É emoção, é troca, compartilhamento, afeto. E como eu menosprezava o afeto quando comecei! Eu achava que o papel do professor era apenas ensinar a matemática. Mas eu tive alguns alunos que me pegaram pelas mãos e me ensinaram que o caminho é justamente o oposto. Aprender deve ser uma coisa emocional, as palavras proferidas devem ter um significado para que ressoem nos ouvidos dos sujeitos. Eles me deram força dia a dia, me energizando quando eu fraquejava. Me consolando quando eles tiravam notas ruins. Me fazendo acreditar que eu mesmo ia melhorar. Eles acreditaram em mim antes de mim mesmo. 

VOLTA PRO WHATSAPP. A DISCUSSÃO FICA POLARIZADA. É INTERESSANTE VER COMO NÓS PROFESSORES ENXERGAMOS O QUANTO NOSSA PROFISSÃO É DESVALORIZADA. MAS TAMBÉM COMO NÓS VEMOS QUE O NOSSO PAPEL PROFISSIONAL É FUNDAMENTAL.

Fim do café (chá no meu caso). Pagamos a conta e vamos andando até as barcas. Fábio e eu fazemos planos para o futuro. Fábio me promete que vai contar histórias também. Eu volto pra casa pensando na potência que essas histórias podem ter. Histórias reais, de seres humanos reais, com dilemas reais, em situações reais, em salas reais. Seres humanos que também são professores de matemática em uma cidade que muito desumaniza, que pouco acolhe. E qual é o nosso papel? Quem somos nós nessa estrutura de poder toda? Em que medida a gente também reproduz essa violência? De que forma nossa ignorância – sobre a melhor forma de ensinar, sobre a maneira de cativar os nossos alunos – nos faz segregar em vez de dialogar?

Não tenho respostas.

Vou de Simon e Garfunkel.

Ouçam no volume máximo até acabar.


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Até mais!

O primeiro dia

E você, caro professor? Lembra do seu primeiro dia?

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Calor. A primeira sensação, subindo a rampa para as turmas do segundo ano. foi de que eu ia acabar tendo uma desidratação, tamanha era a quantidade de suor que saía de mim. Ok, não vai ser tão difícil, eu fiz todos os exercícios da apostila, já tô por dentro do conteúdo, afinal função quadrática é moleza, certo? Então vamos lá, vamos arrasar porque você é foda.

Abro a porta.

Não faço ideia de como começar.

Começar é difícil, eu sei.

Eles me olham com curiosidade.

Ok, vamos lá, primeiro passo, você consegue.

– Bom dia!

Eu queria muito não ser eu mesmo para me ver naquele momento. Vinte e seis anos, sem barba, cabelo curto, alguns quilos a menos, nenhuma experiência, muita preparação para chegar naquele momento ali. O fatídico primeiro dia de aula.

Sim, foi um momento adiado. Quatro anos – e meio – de graduação. Seis meses de férias auto-inflingidas, vamos para o mestrado. Dois anos – e meio – de mestrado numa cidade nova em que você não conhece absolutamente ninguém, comendo o pão que o diabo amassou. Daí, voltar pra casa, procurar emprego como professor, não achar – seu currículo é ótimo, mas você não tem experiência – daí a virar professor substituto de uma universidade, aulas de Álgebra, Análise e Geometria, um semestre, mais um monte de concursos pra professor no processo e eis que eu passo, mais seis meses esperando a convocação, muitos contatos pelo telefone, algumas reuniões preparatórias com a Priscila (sim, Pri, se tem alguém que merece todas as homenagens por eu ter sobrevivido ao primeiro dia de aula é você) e mais um monte de leitura, grupos de pesquisa, artigos e artigos sobre educação matemática, psicologia cognitiva e muita, muita matemática no lombo para estar ali na frente daqueles 30 alunos mirrados e…

travei.

Eu só conseguia pensar que eu estava suando em bicas e que não tinha nenhum jeito de disfarçar isso. E também que nenhuma disciplina da faculdade me preparou pra esse momento

Corta pra 2018. Eu e a namorada no boteco dividindo uma Heineken e eu falo pra ela que tô a fim de escrever sobre o primeiro dia. Ela diz que eu já escrevi sobre isso e eu digo que não, o primeiro dia mesmo. E ela me lembra, com sua sabedoria ancestral, que talvez, de todas as licenciaturas, a que menos prepara para o primeiro dia seja a de matemática, justamente porque ela deixa de lado tudo o que é sobre o humano, sobre gente, e foca só no que é exato, mensurável. Há algo a se mudar nas nossas licenciaturas.

Pego o giz. Escrevo meu nome no quadro. Olho para os alunos. Há algo errado, mas o que é? Alguém me aponta o quadro e eu percebo. Errei meu nome. Sim, a primeira palavra que eu escrevi no quadro negro estava errada. Começamos bem, Cacaroto.

Ok, eu vou ter um troço. Vamos lá, você consegue. Eles já sabem isso, é só uma revisão.

– Bom dia.

– Você já falou bom dia.

É verdade.

– Eu esqueci uma coisa, já volto – a voz saiu aguda, quase como um choro.

A respiração estava totalmente disforme. Banheiro. Abro a torneira e tento molhar o rosto, mas a água vem muito forte e acaba causando um acidente. Claro que pode piorar.

Ok, a licenciatura não ajudou, mas você deu aula na faculdade, rapaz, aula de Análise! Só professores muito bons são capazes de dar aula de Análise! Lembre-se, é função quadrática, é mo-le-za. Mas a faculdade não ensina muito função quadrática. O que eu preciso lembrar? Coordenadas do vértice. E o quê mais? Não lembro.

E aquelas aulas todas da faculdade de educação? Piaget, Vigostsky? Onde é que eu vou usar isso?

Um parênteses. Claro que as disciplinas da educação são muito úteis para ser um bom professor. Mas o que eu estou expondo aqui é justamente como. ao não entender a aplicação delas na prática, eu não fazia ideia do que fazer com esse conhecimento. E, convenhamos, eu estava no meio de uma crise. Racionalidade é querer demais da minha pessoa naquela situação.

A torneira ainda aberta. Olhando para o espelho, eu tô num beco sem saída. A turma lá me esperando, eu suando em bicas, sem ideia de como começar. Respira, respira. É um desafio. E você se sente desafiado, como você age?

Lembrei de muitos anos antes, quando eu treinava judô, ainda na faixa amarela, da voz do sensei Guilherme dizendo que a gente começa a ganhar a luta dentro da cabeça. A mente do guerreiro é clara, não há espaço para dúvidas, para medos, para frustrações. A mente do guerreiro é calma, como calmos são seus gestos e movimentos. A cada momento, o guerreiro sabe exatamente o que fazer. E essa calma começa justamente na respiração, quando ele consegue olhar para dentro de si mesmo e se conhecer com profundidade.

Desde o primeiro post dessa série eu tenho insistido que o trabalho do professor é intencional. O professor age com um objetivo: ensinar. Ele articula suas habilidades – experiências, saberes, emoções, gestos – para direcionar o processo de ensino. É preciso que isso seja consciente para que os resultados de aprendizagem aconteçam. Mas, é claro, também é preciso muita experiência para entender o que funciona ou não. É na prática que esses saberes e habilidades e configuram em ações pedagógicas. A experiência da prática que transforma as intenções docentes em ações de ensinar. O judô me ensinou muito sobre isso.

Ok, estou mais calmo. Mas o quê fazer? Qual vai ser o próximo passo? Dar bom dia de novo? Ensinar aos alunos como se faz um ippon seoi nage? Acho que não é bem por aí…

O que está errado? Porque não funcionou o começo? Onde você errou o planejamento? Cara, você escreveu seu nome errado e deu bom dia duas vezes. Dá pra fazer melhor que isso. O problema é que eu ser eu estava bem difícil naquele momento…

Eu-re-ka.

Basta não ser você mesmo, ora pois. E você sabe fazer isso! Um ano e meio de teatro amador. Você não é nenhum Daniel Day-Lewis mas é melhor do que nada. Vamos lá, olhe para esse espelho. Quem você quer ser? Postura. Ajeita essas costas, menino. Confiança. Olhar para um ponto neutro, além da plateia. Agora a voz, lembre da voz. tem de sair do diafragma, não da garganta. O resto é resto.

Entro na sala.

– Então, gente, eu sei que vocês já sabem bastante coisa sobre parábolas – vamos começar com uma revisão.

O problema é que aula não é teatro. A plateia interage…

– Mas professor, me diz uma coisa, pra quê serve isso? – aluno gaiato detectado.

Não dá tempo pra pensar, responda, mantenha o personagem, atue com ele. É que nem naquele exercício de jogo de cena. Você consegue.

– Digamos que… – que exemplo dar? Jogo de cena, fala o que tá no subconsciente e o resto sai – que você esteja no forte de Copacabana e seu país seja governado por um presidente ilegítimo e você e 16 amigos tomem o forte para derrubar o governo no meio da madrugada. E, para que todo mundo perceba que você está falando sério, você resolve bombardear o palácio do Catete.

– Ah, tá de caô! O forte tá em Copacabana é muito longe do palácio do Catete. E tem uma cadeia de montanhas no meio do caminho.

– Mas isso aconteceu.

Todos os olhares estão em mim.

– E, bem, a trajetória de um projétil lançado do forte é uma parábola.

– Ok, é uma parábola, a gente sabe. Mas ninguém é doido de fazer um negócio desses.

– Uai, mas fizeram. E era importante que os cálculos fossem certos para acertar o palácio, não as casas do Catete que não tinham nada a ver com isso.

– Bombardearam o palácio?

– Sim, sim. Daqui a pouco eu conto essa história. Mas vamos lá – faço um desenho no quadro – Aqui fica o forte de Copacabana e aqui fica o palácio do Catete, e aqui é a cadeia de montanhas. Então – desenhando uma parábola – a gente tem de pensar em como fazer para o projétil fazer mais ou menos esse caminho. Alguma ideia?

E os alunos foram falando. Sobre x do vértice, do vértice, concavidade voltada pra baixo, ângulos…

– Tá, professor, a gente já entendeu que dá pra usar parábola nisso. Mas agora que a aula tá acabando, conta a história desses malucos que tomaram o forte.

– Ah, essa história é boa! É a história dos 18 do forte!

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E foi assim meu primeiro dia de aula. Claro que eu cometi muitos erros. Olhando retrospectivamente, não foi só o meu nervosismo, mas também a tentativa de ignorar os alunos, o fato de encarar a aula como se fosse um planejamento perfeito, também não ter pensado antecipadamente sobre a aplicação daquele conhecimento na prática.

Mas também aprendi muitas coisas. Percebi que dentro de mim eu tinha várias habilidades que eu não tinha utilizado ainda. Os meus pequenos conhecimentos de teatro, um pouco de matemática que eu tinha e muita postura. Com o tempo eu fui criando um personagem – o professor Ulisses – e foi ficando mais fácil me divertir fazendo aquilo. Claro que também houve muitas crises, mas olhando pra esse dia, há 7 anos atrás, eu lembro com bastante carinho desses alunos fofos que me ensinaram tanto. Tenho uma dívida impagável com eles, assim como todos os professores que tiveram muita paciência para ouvir meus lamentos e me ajudar com ideias.

A Priscila, que dividia série comigo, foi a mais importante delas no comecinho, me ensinando a planejar, a avaliar, a ouvir os alunos e tendo um carinho imenso comigo todas as vezes que eu meti os pés pelas mãos. E é muito importante ter alguém com quem contar, tirar dúvidas e rir um pouco. Nisso eu sempre fui muito afortunado.


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Até mais!

Caleidoscópio de Crepitares

Continuando a linha de posts sobre a realidade docente, sobre as dores e delícias de ser professor, hoje o assunto é conjuntos.

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REFLEXÃO ANDANDO NO CORREDOR DEPOIS DAS DUAS PRIMEIRAS AULAS, SUADO PORQUE O AR CONDICIONADO NÃO FUNCIONA, UM MONTE DE ALUNO ESBARRANDO EM MIM NO CAMINHO: Às vezes, por mais saberes que você tenha, por mais experiência e abertura para o novo e por mais metáforas que você conheça, há coisas que você não é capaz de dizer. Tem coisas da atividade docente que são do sentir. Esse feeling, essa capacidade de perceber os não ditos, de prestar atenção no detalhe no meio daquele caos, é o que diferencia o trabalho do professor, mas não de qualquer professor, mas daquele professor que passa pela vida do aluno e deixa lembranças.

AULA DO PRIMEIRO ANO, AULA BORING DE EXERCÍCIOS DE CONJUNTOS DO LIVRO DIDÁTICO:

– Então gente, o conjunto vazio está contido em todos os conjuntos, logo, nesse caso…

Corta pra menina com cara de incrédula na segunda cadeira do lado esquerdo. Olhar perdido e um pouco de tristeza.

– Mas como é que o vazio pode estar dentro de todos os conjuntos?

Olho pra cara dela, respiro. Metáforas.

– Vocês não sentem que tem um vazio dentro de todos vocês? – Risadas eufóricas. Espero que elas terminem – Mas é sério. Há um pouco de vazio dentro de cada coração. Vazio de alguém que se foi, vazio de um amor que não se viveu, vazio de uma coisa que não se fez, vazio de ser algo que a gente não quer ser. Vazio de carregar expectativas de outras pessoas. Vazio. Não podemos ignorar esse vazio porque ele é muito forte e poderoso. Nem podemos preencher esse vazio com outras coisas, como muita gente faz: com expectativas, com sonhos impossíveis, com comida – boto a mão na barriga e arranco algumas risadas – mas podemos dar a esse vazio uma dimensão que ele realmente tem. O vazio que tem na gente é do tamanho que a gente deixa ele ficar. A gente tem agência, ou seja, a gente pode agir na nossa cabeça para que nosso coração reconheça esse vazio e saiba lidar com ele. Resumindo, nós todos somos conjuntos com nossos vazios interiores. Tá convencida?

Ela sorri e não responde nada com a boca, mas os olhos brilham. Fim da Filosofia, vamos pra Matemática.

– Mas eu tô entendendo que vocês não digeriram muito bem esse conjunto vazio, né? – Alguns alunos assentem – Como é que pode uma coisa que não possui nada estar em todos os conjuntos? Gente, não se preocupem, a ideia do conjunto vazio é muito sofisticada…

PAUSA PARA FALAR COM O PROFESSOR: Sim, eu sei que você provavelmente teve um pouco de teoria dos conjuntos no seu curso de Álgebra (ou Análise) e conhece um pouco da axiomática dos conjuntos, provavelmente o sistema de Zermelo-Fraenkel (AZF) que é o mais famoso nas terras tupiniquins que seguem os livros do IMPA. Mas aí você vai dar aula no primeiro ano e pensa logo: vou falar da axiomática de conjuntos e vou fazer uma construção formal. Ok, é uma alternativa. Inclusive, eu acho que a potência da matemática é que, com algum pré-requisito, é possível fazer as pessoas entenderem sobre o que a teoria está falando. O caso do vazio é um exemplo emblemático já que, com base nos AZF, é possível provar que o conjunto vazio existe e é único. Mas, percebam que a dúvida aqui é outra: não é de provar a existência e unicidade do conjunto vazio, mas de dar uma concretude a esse conjunto e suas propriedades de modo que eles mesmo entendam. O professor precisa de estratégias para justamente fazer isso. Proponho um pensamento alternativo: o vazio como ideia existe (e é único) para que se adeque à teoria, para que ela seja coerente. Assim, a ideia de vazio é extremamente sofisticada já que ela não é natural – no sentido de que ela não pode ser percebida diretamente dos sentidos, como a ideia de que por dois pontos passa uma única reta – mas que foi construída como uma consequência de uma teoria matemática fundante. Assim, do ponto de vista pedagógico, o vazio é um nó, mas também é um ponto de partida.

… lembra que eu falei outro dia mesmo sobre como a teoria dos conjuntos é a base da matemática? Se a gente tá na geometria, pontos são subconjuntos de retas, que são subconjuntos do plano. Na semana passada, a gente falou dos conjuntos numéricos e que os naturais são subconjunto dos reais, etc… Então a teoria que a gente tá estudando agora não é óbvia e ela precisa ser suficientemente geral para funcionar em todos esses complexos sistemas matemáticos. Mais do que isso, gente, o que vocês tão vendo aqui é um vislumbre da própria estrutura da matemática em si. É como se a gente visitasse o interior de um prédio muito intrincado e fosse olhar o que segura ele em pé.

– Então tem axiomas de conjuntos que nem tem axiomas na Geometria?

– Sim, jovem padawan. Como o professor Claudio falou para vocês outro dia, o que sustenta esse palácio de pensamento é a lógica. Os axiomas são a fundação e a lógica é como se fossem as colunas que seguram as paredes. Por isso o que o Claudio falou pra vocês é tão importante.

Pausa para olhar de admiração.

VOLTO AO CORREDOR, NA SAUNA CARIOCA DE FIM DE VERÃO. PENSO NUM ALUNO QUE PARECIA ISOLADO, LÁ NO FUNDO DA SALA, NÃO FALOU NADA A AULA INTEIRA, MAS PRESTOU MUITA ATENÇÃO. PARECIA QUE ELE OLHAVA ATRAVÉS DE MIM. PARECIA QUE ELE CONHECIA A NATUREZA DO QUE EU FALAVA.

VOLTA PRA SALA

– Mas então, vamos voltar pro exercício. Todo mundo convencido que tem um vazio em cada conjunto? “SIM”. Vamos brincar um pouco com vazio então. O que é vazio união com o conjunto A? “A, professor, porque não junta nada com o A”. Ok, todo mundo entendeu a ideia dela?

Eu podia sentir. Era quase uma energia elétrica. A Epifania estava chegando.

– Professor, eu acho que entendi um negócio zoadaço! Eu acho que sei porque você quis falar dos conjuntos numéricos antes.

– Por quê?

– É que você falou que a gente “cria” os inteiros para poder fechar a operação lá, né?

Pulos internos de alegria. Vai que é sua Taffarel.

– Ok, onde você quer chegar?

– Então, pra mim eu tô enxergando que a união é uma operação…

Outro aluno – Caraca, maluco, é isso mesmo! É como se união fosse somar!

Aluno original – E o vazio fosse o zero!

Êxtase. Onde assino minha aposentadoria? Mantenho a cara de paisagem. A turma toda em silêncio olhando para mim. Dois ou três segundos de suspense. E eu bato, lentamente, uma mão na outra, sorrindo orgulhoso!

– Desse jeito vocês vão deixar de ser padawans logo logo! – Aplausos

Percebam que, como disse no post anterior, a ação do professor é intencional. É claro que eu não poderia saber que os alunos teriam esse insight, mas enfatizar as operações nos conjuntos numéricos na aula anterior ajudou a fazer com que eles percebessem a ideia geral de que a mesma estrutura – guardadas as devidas proporções – está na operação soma na operação união. Mas, principalmente, deixei os alunos confortáveis para fazerem conjecturas sobre ideias complexas e valorizei seus raciocínios, embora não completamente corretos. Matemática é muito sobre descoberta, mas sobretudo sobre ousadia.

VOLTA PARA O CORREDOR. O TAL ALUNO PASSA POR MIM E EU SORRIO. OK, NÃO VAMOS CONVERSAR HOJE, AINDA NÃO DÁ. MAS JÁ SEI QUE TENHO ALGO IMPORTANTE A PERGUNTAR PARA ELE. DE ALGUMA MANEIRA PERCEBO NELE UMA FAÍSCA. MAS EXISTEM OUTROS ALUNOS, OUTRAS FAÍSCAS. PENSO NA CAROL FRANÇA, EM ALGO MUITO BELO QUE ELA ME DISSE SOBRE ALUNOS SEREM FAÍSCAS DIFERENTES CREPITANDO NA SALA DE AULA E, POR ALGUM INSTANTE ENQUANTO SOU PISOTEADO PELAS CRIANÇAS CORRENDO NO INTERVALO, EU PERCEBO QUE TUDO FAZ SENTIDO, QUE PROFESSORES SÃO DOTADOS DE HABILIDADES E QUE A GENTE NÃO DEVE APAGAR CHAMAS, A GENTE DEVE FAZER CREPITARES. E, MAIS AINDA, PERCEBO QUE A UNIVERSIDADE DEVE DAR VOZ A ESSES PROFESSORES. DEVE DAR OUVIDOS A ELES (A NÓS), NÃO SÓ OUVIDOS HERMÉTICOS DE UM EXPERIMENTO CIENTÍFICO, CHEIO DE METODOLOGIAS, MAS OUVIDOS HUMANOS, HUMANIZANTES, GENEROSOS E GERADORES DE TRANSFORMAÇÕES.

VOLTA PARA QUINTA-FEIRA PASSADA: Defesa de doutorado do Fabio Lennon, vamos ao shopping depois dividir uma garrafa de vinho.

– Então, Ulisses, uma coisa que eu tenho feito com meus alunos é pedir para eles escreverem histórias…

– Histórias de vida, redações?

– Não, não. Eu peço para eles escreverem histórias sobre, sei lá, zumbis. E aí ele fala da mãe zumbi que morreu, do irmão zumbi que morreu. Das pessoas zumbis que ele amava e que ele agora está sozinho. E eu percebo que ele quer contar a história dele. É a vida dele, ele tá dizendo tudo o que a escola não deixa ele dizer, tudo o que a escola ignora, tudo o que é importante. Ele quer gritar, ele está numa sala – No caso, é uma turma de aceleração – em que todos disseram o tempo todo que eles não eram capazes, que ali não era o lugar deles, que eles eram burros e eu digo que não. Eu valorizo as histórias deles, eu os escuto, eu os deixo falar. E quando eles falam, eles confiam em mim e aí eu ganhei esses alunos. É como se a gente falasse a linguagem deles

– No sentido do Paulo Freire, de partir da realidade do aluno para fazer a pedagogia?

– Mais, no sentido etnomatemático mesmo. É de fazer com que a matemática que eu ensino tenha sentido e significado para eles

– E aí a narrativa é esse lugar da fala? Tipo, o lugar de empoderado, de super herói, de ser o cara que vai salvar o dia e matar os zumbis.

– Exatamente. Tudo o que eles precisam é de uma válvula de escape, de alguém que deixe eles serem quem são

VOLTA PRA HOJE, DEFESA DO MESTRADO DA CAROL FRANÇA.

CAROL: Mas o que eu queria era compartilhar com vocês o que é a parte mais íntima e mais pessoal desses professores entrevistados: a sua história. E eu preciso ter um cuidado muito grande com isso porque eu devo respeitar esses sujeitos que eles são. […] Assim como a gente tem de ter cuidado com ouvir os nossos alunos, permitir que eles tenham suas linguagens e cresçam, se desenvolvam com ela. Devemos te cuidado com as falsas escutas…

VOLTA PRA AULA. Tá galera, hoje a gente já andou bastante. Vamos parar conjuntos um pouco e vamos para algo mais palpável. Vocês conhecem o problema dos quatro quatros?

Há o momento do profundo e há o momento do lúdico. Há o momento do Axioma e o momento da metáfora. Há o momento do caos caótico e o momento do caos do aprendizado. Há sempre o momento de aprender.

VEM PRO PRESENTE “PRESENTE” ENQUANTO ESCREVO ESSE RELATO. De alguma forma, embora eu não saiba exatamente onde vai chegar essa história toda, eu me vejo no meio desses amálgamas todos de sensações. Me vejo no local de escuta. Me vejo no local de desconforto e reflexão. Me vejo no lugar de alguém que se sente na liberdade de ousar e experimentar. E isso, profundamente, me transforma, me transborda. Isso me faz ser eu…


Se você, caro professor, quiser continuar batendo um papo, basta mandar um e-mail para ulissesdias@yahoo.com.br. A gente tá sempre à disposição para ouvir novas histórias e melhorar! Abraços

 

 

 

 

Conjuntos Numéricos, Amor, Pitágoras e Bach: uma introdução problematizada

Muito inspirado pela minha colega Daniela Mendes que escreve constantemente aqui nesse belo site, eu resolvi dividir com vocês algumas das minhas experiências em sala de aula. Isso porque eu acho que nós, enquanto professores, produzimos conhecimento ao transformar os conteúdos escolares em ações pedagógicas, dotadas de intencionalidade e reflexão. Refletir, transformar a maneira de pensar desses sujeitos-alunos – em suma, fazê-los pensar fora da caixinha que eles mesmos se colocam – deve ser um dos principais objetivos do professor de matemática. Compartilhando como fazemos isso, discutindo e melhorando juntos, ao adaptar para nossos contextos escolares e nossas realidades cotidianas, pode servir para melhorar nossa prática pedagógica e, consequentemente, a aprendizagem de nossos alunos. Mas vamos ao que interessa…

Meu objetivo era trabalhar com meus alunos com os conjuntos numéricos: Naturais, inteiros, racionais, reais… Falar sobre seus subconjuntos e propriedades. Mas como fazer isso? Fiquei matutando isso uns dias, até que achei uma ótima maneira de fazer isso:

– Alunos, vamos começar a aula de hoje com uma pergunta problematizadora: como é que a gente faz para medir o amor?

Como esperado, logo após o susto inicial começou uma explosão de respostas: “ah, não dá pra medir não”; “pra medir eu tenho de ter uma unidade, que unidade é essa?”; “ué, mas amor é infinito, infinito não dá pra medir”; “mas amor é tudo igual”; “nada, o amor que eu sinto pelo meu pai é diferente do que eu sinto pela minha namorada”; “mas só dá pra medir o que eu posso observar…”; “e você observa a temperatura como?”

Foram uns bons cinco minutos com uma excelente discussão sobre o que é medir, sobre o que pode e o que não pode ser medido, sobre o que é o amor que a gente sente e – inconscientemente – sobre matemática. Volta para o professor, dúvida geral…

– Ok, nenhuma resposta satisfatória. Mas o que é medir, como é que a gente mede as coisas?

Engraçado – e esperado – ver que os alunos ainda confundem a ideia de contar com a ideia de medir. Falei com eles sobre o processo de contagem e perguntei o que a gente usa pra contar. “Números”; “mas quais números, padawans?”; “1, 2, 3”; “e como é que eles se chamam?”; “NATURAIS!!!”.

Salva de Palmas, eles se achando a última bolacha do pacote…

– Ok, mas me digam, quais são as propriedades desse conjunto?

De maneira intuitiva, falei com eles sobre três importantes propriedades dos números naturais:

  • O conjunto dos naturais tem um menor elemento
  • Todo número natural tem um sucessor
  • O conjunto dos naturais é infinito

Claro que poderia ter tomado um caminho mais formal, trabalhando os axiomas de Peano de uma maneira mais aprofundada, inclusive dizendo o que significa o “infinito” na terceira propriedade, mas meu objetivo aqui não era esse – apesar de as aulas de análise me ajudarem muito a sair das perguntas dos alunos sendo sincero e verdadeiro, mas utilizando uma linguagem menos carregada. Justamente por conhecer o formalismo da Análise que eu pude propor uma discussão sobre os fundamentos dos conjuntos numéricos com alunos do primeiro ano do ensino médio de um nível que eles são capazes de compreender. Mas minha intencionalidade como professor estava sempre ali.

Brincamos um pouco com as propriedades dos naturais, volta a fala pro professor (no caso eu, que ainda não decidi se falo em primeira ou terceira pessoa, mas acho que o leitor tá acompanhando, então tá sussa):

– Mas então, qual é o próximo conjunto?

– INTEIROS – Minha cara de decepção

– Mas por quê?

– Como assim por quê? “No livro vem os inteiros depois dos naturais”; “os inteiros são iguais aos naturais, mas com o menos” – um monte de aluno falando ao mesmo tempo como se não houvesse amanhã.

Pausa para comentários: Os alunos não questionam a ordem de exposição dos números, nem os motivos para que eles sejam assim. Apenas recitam as propriedades conhecidas por eles. Acham, inclusive que a ordem do livro é a ordem que deve ser dada. Postulo que muitos de nós, professores, pensamos assim. Eu idem…

– Mas olha só, pensem comigo, o que é mais “fácil” de acontecer: alguém medir uma coisa com uma corda e não dar a corda inteira ou, sei lá, ficar devendo dinheiro no banco? Do ponto de vista do desenvolvimento necessário da sociedade? O que eu quero dizer é que o ato de medir é historicamente anterior ao ato de criar um número negativo.

– Mas professor, então porque os livros apresentam os inteiros antes?

– Ué, por dois motivos: vocês têm razão que os inteiros são mais parecidos com os naturais, mas também porque quando a gente define os racionais – que vocês pelo visto já conhecem também – a gente usa números inteiros, né?

– Hum…

– Mas alguém falou lá atrás que os inteiros são naturais com sinal. Ok, mas como surge um número negativo?

– Subtraindo.

– A ideia tá certa, é bem por aí mesmo. A gente percebe que se a gente soma dois números naturais o resultado dá um número natural, assim como quando a gente multiplica, mas quando a gente subtrai isso não acontece. Subtrair 7 de 5 dá resultado -2. Esse conjunto novo, os inteiros, está ligado a essa ideia de fechamento das operações soma e produto

– Mas a divisão não é fechada, né professor?

– Salva de palmas para o Cacaroto aqui da fileira da direita – Alunos aplaudem – mas a gente tá indo rápido nessa discussão. Vamos escrever um pouco no quadro sobre o que a gente já sabe dos inteiros.

Aproveitei esse tempo para sistematizar no quadro as propriedades dos inteiros: com foco principalmente na existência do simétrico aditivo.

Nova pausa: Alunos de licenciatura em geral e muitos professores, em particular, não valorizam as aulas de álgebra na universidade. Mas aqui a gente enxerga um momento fundamental em que as propriedades de um anel são apresentadas – intuitivamente – aos alunos da educação básica. Conhecer aquelas demonstrações sobre o que define ou não um anel e as propriedades é muito útil para que você, como professor, compreenda a estrutura dos conjuntos numéricos. Claro que seria muito melhor que esses cursos fossem problematizados, ou seja, pensados para a licenciatura, trazendo exemplos da sala de aula. Um ótimo lugar para ver uma forma alternativa de apresentar essas disciplinas é o canal do Pemat no Youtube, onde há as aulas do curso de análise para a pós-graduação dadas pelo professor Victor Giraldo.

Volta para a aula, utilizo agora a ideia de inverso multiplicativo para justificar esse novo conjunto – os racionais. Defino os racionais em termos de a/b, com a e b inteiros, b diferente de zero, como nos livros. Mas perceba que eu não estou com foco na definição, nem com foco nos inteiros, nem com foco nas dízimas periódicas e não periódicas, nem na escrita deles na forma decimal. Apenas estou aqui focando a ideia de fechamento das operações, justamente pelo feedback da turma. Em outro momento eu voltarei as essas propriedades com mais detalhes e formalismo.

– Acabou, né galera, podemos ir embora.

– Oi? E os reais? E os irracionais?

– Mas o nosso foco não eram as operações? Somar, subtrair, multiplicar e dividir? Esse problema a gente já resolveu…

– Mas a gente não mede com os reais?

– Não, a gente mede com os racionais. Quando você tem uma medida, no mundo real, o resultado dá 1,32cm; 31,45m². No mundo real a gente não usa casas decimais infinitas, a gente usa aproximações. Então, se o foco é só para utilizar, os racionais estão de bom tamanho… só que… isso me incomoda um pouco. Eu acho que a gente não devia se focar apenas no que a gente usa, mas em entender a natureza das coisas e querer sempre mais. Porque se a gente só dá atenção para aquilo que é necessário, aquilo que é imediato, como a gente consegue entender as nuances das coisas com profundidade e ir além? Porque além disso, existe apenas e tão somente a fé. Mas quando a gente usa a razão para ir além da crença, a gente ao mesmo tempo que se liberta das amarras que colocamos sobre nós mesmos – através da crença – e podemos ver beleza onde menos imaginamos… e até morrer por isso…

– Morrer por pensar?

– Morrer por questionar a crença.

– Mas o que isso tem a ver com a matemática?

– Ora, padawans, tudo. Vou lhes contar uma história que, como todas as histórias antigas, recontadas de geração em geração, tem muito de real, mas muito de lenda. Vocês já tiveram aulas de filosofia?

– Não, começa essa semana!

– Certeza que cês vão curtir. Mas voltando, alguém que vocês já ouviram falar muito, muito, tinha uma escola de Filosofia na Grécia antiga: Pitágoras. Para ele e seus discípulos, tudo era número e se você estudar bastante será capaz de ouvir a música do universo. Mas quando dizemos número, queremos dizer número racional, a/b, sabe como é, né? Pitágoras e seus discípulos viam número em tudo: na música, nas artes, na beleza, em cada recanto do universo. Mais eis que um de seus discípulos descobriu, pasmo, que haviam números que não poderiam ser escritos na forma a/b. Estupefato, apresentou a seus colegas a sua descoberta e, embora ninguém tenha certeza exata do que aconteceu, sabe-se que morreu logo depois disso.

– Morreu como? – sempre tem alguém interessado nos detalhes mórbidos…

– Afogado. Mas continuando, dizem que ele conseguiu provar que raiz de 2 não é um número racional. Eu não sei exatamente como é que ele fez essa prova, mas eu sei uma demonstração que vocês são capazes de acompanhar

E fiz a demonstração clássica de que raiz de 2 é irracional utilizando argumento de paridade.

É importante destacar que a demonstração em si utiliza poucos elementos complexos e os alunos do primeiro ano do ensino médio acompanham bem os passos. Mas o mais interessante é que eles prestaram muita atenção no raciocínio porque eles entenderam que aquilo era fundamental, já que desafiava a ideia de que todos os números eram racionais. Não propus a discussão de um conjunto em que as dízimas não são periódicas, nem um conjunto em que estão as raízes quadradas, cúbicas, etc. A demonstração serve para introduzir um conjunto que não se encaixa, o que faz – potencialmente – os alunos terem uma visão, uma metáfora mais precisa da necessidade dos números reais. Olha a Análise aí de novo…

Acabo a demonstração e falo algumas propriedades dos números reais e vejo que os alunos estão prestando muita atenção e muito interessados. O problema de contar e medir se transformou num problema teórico importante: um novo universo é criado, os reais. Quando apresento o Diagrama de Venn, com os conjuntos numéricos encadeados, percebo que o meu foco principal foi alcançado: os alunos perceberam que novas operações, novos problemas, foram criando novos conjuntos.

conjuntos

– Percebam a beleza do que fizemos aqui hoje: novas formas de pensar levam a novos universos. É o poder do pensamento que cria o novo. Da mesma forma que ao aprender coisas novas a gente observa o mundo de uma nova maneira. A matemática é tanto uma ferramenta para entender melhor a realidade – e também para gerar mais e mais desigualdade nesse mundo tão desigual, já que pessoas com poder econômico diferente possuem também informação diferente para tomada de decisão – quanto uma maneira de criar novos mundos que podem ou não existir apenas no nosso pensamento. Se vocês entenderam isso, eu já me dou por satisfeito na aula de hoje.

Olho pro relógio, faltam 10 minutos, vamos falar a linguagem dos jovens.

– Mas então, eu falei que o Pitágoras viu música na matemática. Na verdade, ele enxergou razões entre números como uma maneira de modelar as notas musicais. Muitos professores dizem, inclusive, que a escala ocidental – dó, ré, mi.. – é devida a Pitágoras. Eu diria que isso é impreciso. Pitágoras manjava dos paranauês sim, mas assim como o seu discípulo questionou sua conclusão de que os números são todos racionais, outra grande personalidade, agora um músico, ousou questionar os padrões do que é música e ir além.

Saquei o celular do bolso.

– Ouçam isso, mas com os ouvidos de sentir, não com os ouvidos de gostar…

– O que vocês sentem?

“é chato”; “tá subindo e descendo”; “é como se estivesse dançando”; “pra mim parece uma abelha zunindo”; “é bonito, de quem é?”

– Quem compôs essa música foi um cara chamado Bach. Ele foi um grande estudioso de teoria musical e foi um dos músicos que mais contribuiu para a música ocidental. Ouso dizer que ele mudou as bases da própria música, trazendo mais emoção e sentimento para a música e permitindo que a gente pudesse ir cada vez mais longe, experimentar cada vez mais. Bach pisou nas estruturas vistas por Pitágoras e fez essa coisa linda que cês tão ouvindo agora. Mas…

Interrompo a música, mexo no celular…

– Eu sei que vocês querem ir no intervalo, mas eu queria que vocês prestassem atenção nessa flautinha no começo dessa música aqui e percebessem a semelhança

Risada geral.

– Sim, galera, o mesmo Bach fez a flautinha no começo dessa música. Então se vocês se divertiram muito nas férias dançando esse funk, agradeçam a ele. Bom intervalo pra vocês, sejam felizes e aproveitem a vida.

– Peraí, professor, cê não respondeu.

– O quê?

– A pergunta do começo da aula! Como é que a gente mede o amor?

– É simples. É só você ter uma régua infinita, hahahahaha! Tchau!


Se você, caro professor, ficou um pouco mais interessado nos detalhes históricos e matemáticos que eu trouxe na minha aula, recomendo fortemente a leitura do maravilhoso livro Godel Escer Bach que trata dessas e de outras muitas nuances da interface entre matemática, lógica, arte e música. Também estou disponível para conversar por e-mail: ulissesdias@yahoo.com.br. A gente tá sempre à disposição para ouvir novas histórias e melhorar! Abraços

 

Eupátrida

Eu-pátrida. Essa pátria é minha!

Minha terra, minha cidade, minha praia, meu bairro,

Minha rua, minha história, minha luta,

Minha família, minha empregada preta,

Minha cantada escrota, minha Hilux prateada,

Minha viagem pra Paris, meu passaporte diplomático, meu cartão sem limite,

Meu apartamento na Vieira Souto, meu buldogue francês,

Minha carta de vinhos, minha religião, meu Deus branco e barbudo em cima das nuvens dando perdão em troca de dólar,

Minhas ações, meu par de esquis, meus mocassins importados,

Meu convite pra festa no Copacabana Palace,

Meu Maracanã, minha cadeira cativa no jogo do Flamengo,

Meu jet ski, minha camisa da Polo Aramis Roxa,

“O auriverde pendão da minha terra” balançando em meu iate,

Meu orgulho pátrio, meu tucano preferido,

Meu programa de domingo à noite,

Meus funcionários, minha startup, meu hedge fund, interest hate, spending, wealth, stability, anyway,

Meus bailes no canecão, meus diamantes eternos, minha nostalgia do que não vivi.

Meu direito: de odiar, de ser invejado porque eu sou tudo, eu sou fera, eu sou foda, eu sou o que leva esse país pra frente, eu sou a estabilidade, eu sou a tradição, eu sou a personificação da beleza, da saúde e do sucesso, eu sou visto, eu sou lido, eu sou ouvido, eu sou mindfulness, eu sou o orgulho, eu sou a essência, eu sou o herói, eu sou o ídolo, eu sou o formador de opinião, eu sou tudo o que você deseja, tudo o que você sonha, tudo o que te negam, tudo o que te faz suspirar

Eupátrida. Eu-pútrido. Eucarionte. Eu-lírico. Euskera. Eudoxo. Europeu em todo sangue: branco de todos os traços, nobre em todas linhagens, puro, sacrossanto, “impávido colosso”, acima do bem e do mal.

Mas não te queixes do que não és.

Pois quando tu és-perança, eu-camburão;

Quando tu és o voto, eu-mensalão;

Quando tu andas solto, eu-roda-viva!

Quando tu és diretas, eu-TSE

Quando tu és Bastilha, eu sou Brasília.

 

Modiglianesca

modigliani.jpg

Deitada, arfante e nua

a pele em degredo, multiascendente

falha em dominar-se

pulsa.

 

Eu-lírico

beijo-a

e invento palavras

sinestesias

fissuras

Tomado de experiências

fito-a, desfolhar-se

em êxtase;

seduzido;

acuado:

entregue

Passo a desequilíbrios

propenso a ingerências

máximo em tordesilhas

criando linhas para derrubar

sucumbo

Sou dela, em pouso, arco, fel e entendimento.