Autor: Fábio Lennon Marchon
Dia desses, na sala de aula em uma turma regular de nono em uma escola pública da Prefeitura Municipal de Niterói, revisava os cálculos com potências, enunciava e exemplificava as regras de cálculo. As dificuldades remontam os conceitos elementares. E, mesmo tendo falado a respeito, na primeira atividade proposta as dúvidas emergem e denunciam os pontos sensíveis na formação matemática destes jovens.
– Professor…então dois elevado a três é seis…certo?
– Não! De acordo com o que vimos até este momento isto não está certo. Esta seria a resposta para outro tipo de regra, outro jogo, outro raciocínio!
– Não entendi! Não entendi nada!
Falei para a turma que um jogador de futebol, no Brasil, utiliza os pés; as mãos apenas em casos especiais, por exemplo, em um lateral. No rugby, por outro lado, os jogadores correm pelo campo e, nas mãos, carregam a bola que está em jogo. Assim, tentei mostrar que para jogos diferentes existem regras diferentes. Disse que certo e errado dependerá da regra do jogo. Além disso, afirmei que as regras são convenções criadas pelos homens… criadas por algum motivo. As regras e o seu uso têm uma história. Após este papo, continuei falando:
– pense em duas coisas bem distintas: uma soma com parcelas iguais e uma multiplicação com fatores iguais, por exemplo, “dois mais dois mais dois” e “dois vezes dois vezes dois”. Qual deles diz respeito à sua questão?
– hummmm… sei lá! Respondeu o aluno.
– Tudo bem, sem problemas. Então façamos os cálculos. Qual será o resultado da primeira operação que falei?
– seis!
– certo! Escrevemos “2+2+2 = 6”, não é?!
– Sim!
– ótimo! Viu?! Você sabe algo importante! Agora diga-me, quantas vezes o número dois aparece nesta conta? Nesta adição?
– três vezes.
– Então poderia dizer que isso é três vezes dois?
– Sim!
– Ahhh… então eu posso escrever “3×2=2+2+2”?!
– Sim!
– É este o cálculo que você perguntou lá no início?
– Não!
– Então, pense um pouco na segunda operação que eu falei contigo!
– Mas professor… ainda não entendi! Me fala a resposta fessor! E agora? Quanto é “23”?
– Jamais te falarei a resposta pronta…não assim como quer! Pense! Você é capaz de chegar à conclusão! Eu tenho fé em você!
– Eu mesmo não tenho fé em mim!
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Se alguns dos estudantes com 13 ou 14 anos, no nono ano de escolaridade, não conseguem perceber a distinção entre somas e produtos… e isto pode ser ampliado para estudantes do ensino médio espalhados pelas escolas públicas do Brasil… esta poderia ser uma dificuldade em nível semiótico ou, ainda, epistemológico ou, além disso, sociocultural? Seria uma dificuldade multidimensional: semiótica, epistemológica e sociocultural? Afinal, somos seres sociais que estamos amalgamados em uma totalidade (histórica, social, cultural) e vivemos em uma multiplicidade de mundos e realidades… nossas experiências e vivências, nossa aprendizagem, não se dá em partes isoladas.
No entanto, deve-se destacar a prevalência do poder simbólico associado ao discurso legitimado do professor, detentor de um saber reconhecido socialmente (títulos, diplomas, etc.), e autorizado pelo Estado a dizer aos estudantes “verdade” das coisas. Um “falar” que é localizado, posto que é disciplinar. Enunciador de um “saber” específico, posto que é, em geral, isolado de outros saberes e possui suas regras próprias.
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Fragmento para reflexão 1.
Na luta simbólica pela produção do senso comum ou, mais precisamente, pelo monopólio da nomeação legítima como imposição oficial – isto é, explícita e pública – da visão legítima do mundo social, os agentes investem o capital simbólico que adquiriram nas lutas anteriores e sobretudo todo o poder que detêm sobre as taxionomias instituídas, como os títulos. Assim, todas as estratégias simbólicas por meio das quais os agentes procuram impor a sua visão das divisões do mundo social e da sua posição nesse mundo podem situar-se entre dois extremos: o insulto, idios logos pelo qual um simples particular tenta impor o seu ponto de vista correndo o risco da reciprocidade; a nomeação oficial, acto de imposição simbólica que tem a seu favor toda a força do colectivo, do consenso, do senso comum, porque ela é operada por um mandatário do Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legítima. (BOURDIEU, 2011, p.146).
Na sala de aula somos o porta-voz de um saber, ou, o que prefiro, de um conhecimento sistematizado, hierarquicamente construído e artificialmente organizado pelos programas e currículos.
Somos, todos nós professores de matemática, detentores do discurso matemático que é legítimo e válido no espaço escolar. Somos aqueles que os alunos, muitos deles, assumem como os grandes resolvedores de problemas e detentores de respostas, ou seja, guardamos em nossas mentes os segredos que lhes escapam e, na verdade, todas as respostas.
Exageros à parte, essa herança escolar, essa tradição da escrita e da cópia do que está no quadro, a imposição de que eles devem escrever tudo, anotar cada palavra, isso vem se convertendo em um novo desafio….não tão novo assim…vejam-se as inquietações platônicas com relação à escrita em Fedro….
É que a escrita, Fedro, é muito perigosa e, nesse ponto, parecidíssima com a pintura, pois esta, em verdade, apresenta seus produtos como vivos; mas, se alguém lhe formula perguntas, cala-se cheia de dignidade. O mesmo passa com os escritos. És inclinado a pensar que conversas com seres inteligentes; mas se, com o teu desejo de aprender, os interpelares acerca do que eles mesmos dizem, só respondem de um único modo e sempre a mesma coisa. Uma vez definitivamente fixados na escrita, rolam daqui dali os discursos, sem a menor discriminação, tanto por entre os conhecedores da matéria como os que nada têm que ver com o assunto de que tratam, sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não. E no caso de serem agredidos ou menoscabados injustamente, nunca prescindirão da ajuda paterna, pois por si mesmos são tão incapazes de se defenderem como de socorrer alguém. (PLATÃO, 261a-b).
Alguns dizem “mas professor, eu anotei tudo! Pode ver!” e eu, rebato, “certo, mas e pensar sobre o que está anotado? Pensou?”; e acrescento “Vamos refletir sobre o que foi escrito? Vamos estudar isso?”. A oralidade, a reflexão e o pensamento, quando diante da escrita oficial e do discurso legitimado do professor parecem intimidar-se em sala de aula. Para que pensar se isso já foi pensado? Nesse ponto, é exatamente a exigência da prática por parte do aluno que o conhecimento assume alguma relevância. A contradição surge do impasse nascido da crença de que o detentor do saber oficial é o professor e, ainda, que o erro é algo condenável. Ilusões. Todos possuem seus conhecimentos, todos sabem algo, todos podem ser, e de fato são, seus próprios porta-vozes. Cada um têm a capacidade de falar o que sabe, mesmo que o seu conhecimento seja conflitante com a do professor. Apenas regras diferentes. Todos podem argumentar em favor das suas ideias, e deduzir resultados. O mais usual entre os estudantes nesta fase é a exemplificação para expor seus saberes, sejam quais forem.
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Fragmento para reflexão 2.
No interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber. O exterior de uma ciência é mais e menos povoado do que se crê: certamente, há a experiência imediata, os temas imaginários que carregam e reconduzem sem cessar crenças sem memória; mas, talvez, não haja erros em sentido estrito, porque o erro só pode surgir e ser decidido no interior de uma prática definida; em contrapartida, rondam monstros cuja forma muda com a história do saber. Em resumo, uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, “no verdadeiro”. (FOUCAULT, 2011,p. 33-34).
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– Mas, professor, e se eu errar?
– Que problema há? Todos erram! Eu erro o tempo todo! Quantos erros até chegar a um acerto! Aprendemos com os erros!
– Mas eu tenho medo! Medo de errar!
– Mas tanto o erro quanto o acerto dependem da perspectiva diante do que foi feito! Depende de como você vê o problema! Depende da regra do seu jogo! Talvez você tenha feito um grande acerto em outro jogo!
– Mas o seu jogo é diferente! Preciso acertar no seu jogo!
– O jogo não é meu! Estamos em um jogo, sim, mas não criamos estas regras. Contudo, se queremos avançar… temos que conhecer os caminhos e saber usar o que outros já indicaram… o que não quer dizer que você não possa criar seus caminhos por conta própria!
– Ahhh…. professor! Assim você me confunde! Me dá a resposta!
– Nunquinha! Jamais! Vamos pensar juntos, é melhor!
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O medo se eleva como categoria relevante de análise. Talvez, além dele, devam-se incluir o controle de si mesmo em relação ao parâmetro de comparação e exigência que vem do olhar critico do outro (distinto de “eu”). Avançamos para além dos limites da consciência e da razão. O espaço a ser desvendado é a do inconsciente. No nível consciente pode-se tentar alcançar os traumas via lembranças, recordações, rememorações. No entanto, nem todo trauma é essencialmente negatividade. Existe positividade e transformação no trauma.
O médico é sempre e exclusivamente um desses “espectros” (Freud) que fazem ressuscitar no paciente as figuras desaparecidas de sua infância. Em contrapartida, uma única palavra um pouco menos amistosa, um comentário a propósito da pontualidade ou de qualquer outra obrigação do paciente basta para desencadear toda a raiva, o ódio, a oposição, a cólera recalcados, outrora alimentado a respeito das pessoas onipotentes que lhe impunham o respeito, pregavam a moral, ou seja, os pais, os adultos da família, os educadores. Reconhecer a transferência das emoções positivas e negativas é capital na análise. (FERENCZI, 2011b, p. 91).
Cena: O caderno rasgado.
Em 1985, por volta das 19 horas, em uma casa como muitas outras, vê-se a mãe na cozinha, tentando terminar o preparo do jantar. Seus dois filhos estão à sua volta, próximos, gravitando ao seu redor. O pai chega exausto do trabalho. Solicitado pela mãe, o pai se compromete a ajudar o filho com a tarefa de casa. Diante deles um caderno, ainda novo, com alguns exercícios de matemática. O pai rapidamente reconhece que o exercício se concentra nas “regras de sinais”; “menos com menos” e “mais com mais”. A explicação começa de modo inusitado, estranho: “amigo do meu amigo é meu amigo” afirma o pai. Ele prossegue, “inimigo do meu amigo é meu inimigo”. Assim, a “regra de sinais” para os números inteiros que diz que “(+).(+) = (+)” e que “(-).(+) = (-)” assume nova aparência. O “amigo” é “+” e o inimigo “-”. O pai, esgotando suas metáforas, escapando-lhe as analogias, findando seu repertório, irrita-se com a incompreensão de seu filho. O adulto, em um ímpeto de fúria, rasga o caderno do menino ao meio e quebra-lhe a lapiseira. O garoto observa a lapiseira partida ao chão. Objeto com uma simbólica própria no imaginário deste menino. Dias antes o pai havia presenteado o garoto com essa lapiseira, objeto que ele, o pai, utilizava em seu serviço; “a melhor que existe”, dizia o pai naquela ocasião. Agora, quebrada, partida diante dos olhos do menino, representava sua ignorância e incompetência. O garoto, atordoado, mudo, chora silenciosamente. “Ele tem que estudar mais! Tem que aprender a estudar! Vai passar tudo a limpo e estudar!”, grita o pai!
A cena narrada retrata uma experiência pessoal. Eu sou este menino. O rasgo na alma que emerge da colisão com a imagem do herói caído, aquele que se converte em vilão, fez emergir uma vontade incessante de ir além dos meus limites e provar minha capacidade. Houve, no fim, positividade.
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Um ensino de matemática mais sensível e humano exige um olhar quase psicanalítico para nossos jovens. Amontoar crianças em uma sala, abarrotar os espaços, e tratar os jovens como pessoas que devem ser cercadas e controladas em um determinado espaço-tempo não é necessariamente algo que eu concorde. Depósitos de almas. Se existe uma demanda social pela massificação da educação, esta não tem sido acompanhada pela valorização dos seres humanos que chegam à escola. Traumas e medos. Violência simbólica e imposição de verdades. Respostas prontas, cópias e anotações sem significado.
O véu de ilusão ainda não foi rasgado! É importante subverter o discurso do porta-voz oficial do Estado no espaço escolar: o professor.
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Até mais!
Bibliografia Citada
Bourdieu, Pierre. O Poder do Simbólico. Tradução Fernando Tomaz (português de Portugal). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
FERENCZI, Sándor. “Transferência e introjeção” in Psicanálise I. SP: Martins Fontes, 2011b.
Foucault, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 2011.
PLATÃO. Fedro. In: Diálogos. Vol. V. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 1975.